O futuro em debate: a reforma do estado da justiça, uma oportunidade que não podemos desperdiçar

A qualquer cidadão deve ser dada uma defesa digna e qualificada, uma rede suficiente de apoio judiciário que garanta a sua defesa em tribunal. É também essencial melhorar o acesso do cidadão ao conhecimento da lei, com explicações de termos jurídicos em português claro ou traduções de diplomas fundamentais para não-juristas.

Foto
LUSA/MÁRIO CRUZ

Há certamente poucos chavões políticos tão repetidos em Portugal como aquele da “Reforma do Estado”. Constituiu justificação para liberais como Fernandes Tomás e para regeneradores como Fontes Pereira de Melo, esteve presente nas intenções reformistas republicanas de 1911 e é hoje uma constante do discurso da esquerda à direita democráticas. Onde quer que se abra um livro sobre a História de Portugal, a reforma do Reino ou a reforma do Estado são constantemente apelidadas de desígnio nacional. Foram, no entanto, muito raras as vezes em que se concretizaram profundas mudanças de qualquer ordem, sempre mais forçadas por adesões a movimentos políticos ou tendências progressistas internacionais (como a adesão às Comunidades Europeias) do que por exclusiva iniciativa própria.

Das múltiplas razões que explicam esta apatia para reformar, duas são boas e simples candidatas: primeiro, leva tempo; segundo, custa dinheiro. O tempo dá-se mal com ciclos eleitorais curtos nos quais são exigidas apresentações periódicas de resultados com bonitos números; o dinheiro, o país nunca o teve, salvo talvez naquela época dourada em que se enviavam comitivas ao Vaticano (e pelas quais ficámos famosos, injustamente, na língua italiana). Sem tempo e sem dinheiro, o país viu as reformas do Estado tornarem-se bons colegas de programas partidários, mas nunca amigas em quem pudéssemos confiar o nosso futuro.

No entanto, de tempos a tempos, uma crise abana as fundações do país e traz mais uma oportunidade para se efectivar de vez a (mal)dita reforma do Estado. Hoje, no meio de uma pandemia e sob números inéditos vindos da União Europeia, temos essa oportunidade meteórica. É uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.

Foi neste contexto que um grupo de jovens, sob a égide do programa 100 Oportunidades, resolveu entregar aos ministros competentes uma série de propostas concretas para aplicação dos fundos que virão. O grupo com quem trabalhei, em virtude das suas aptidões, dedicou-se a pensar a justiça e o investimento nas estruturas judiciais. As propostas são específicas e praticáveis, destinadas a serem implementadas e não apenas debatidas.

Das várias propostas feitas, existem duas que me parecem essenciais para abrir uma discussão sobre o futuro da justiça: a melhoria do acesso dos particulares à justiça e a digitalização do contencioso.

Primeiro, é essencial garantir que a justiça se encontra ao alcance de todos e não contribui para a perpetuação da desigualdade. Este é um imperativo constitucional que deve ser traduzido em reformas práticas, com mecanismos de transparência que nos digam coisas tão simples como tempos estimados de processos, a repartição da carga de trabalho de tribunais e magistrados, ou os custos médios dos processos (veja-se o exemplo do Reino Unido nesta matéria). Da mesma forma, o patrocínio judiciário tem de se tornar num efectivo patrocínio, ao nível de qualquer outro, e não uma saída pouco apelativa para aqueles que menos têm. A qualquer cidadão deve ser dada uma defesa digna e qualificada, uma rede suficiente de apoio judiciário que garanta a sua defesa em tribunal. Como é também essencial melhorar o acesso do cidadão ao conhecimento da lei, com explicações de termos jurídicos em português claro ou traduções de diplomas fundamentais para não-juristas. Ao cidadão leigo não lhe pode ser exigida a descodificação da criptografia que é hoje o português jurídico; como não lhe pode depois ser imputado o clássico “a ignorância da lei não aproveita ninguém”, quando para ignorar é preciso primeiro entender.

Segundo, temos de continuar o caminho da digitalização da justiça e da modernização da administração pública judicial. Vemos na digitalização da justiça a nossa maior aliada para combater a duração absurda dos processos judiciais, uma aposta essencial para o futuro sustentável dos tribunais. Um verdadeiro contencioso digital em cuja presença física seja a excepção e não a regra; o recurso à mediação digital e o aumento de audiências remotas com notificações digitais não dependentes de moradas elusivas. Coisas tão simples como o aumento dos limites impensáveis de 10Mb na transmissão de ficheiros jurídicos digitais. Somos da opinião de uma justiça digital não deve assustar, mas antes entusiasmar. Portugal tem sido exemplo de modernização administrativa e fiscal em tantas áreas que se julgavam impossíveis de implementar. A justiça deverá continuar esse caminho, garantindo a todos a necessária integração numa primeira fase, mas assumindo que a digitalização servirá a todos no longo termo e tem provas dadas de grande sucesso no território nacional.

Estas são apenas algumas das sugestões que constam de um documento que submetemos à consideração da senhora ministra da Justiça. São propostas sinceras, práticas, feitas por uma geração genuinamente preocupada com o futuro do país. Se hoje nos apresentam uma oportunidade para investir no futuro de Portugal, que fique pois claro que as gerações mais jovens não a deixarão escapar.

Sugerir correcção