Um oásis criativo que floresce na sombra

Uma antiga fábrica de moagem, destruída pelo fogo e abandonada, junto ao Castelo de Serpa, foi transformada pelo município num centro de expressão artística para música e dança onde até se “respira de ouvido”.

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Pelo estúdio de gravação do Musibéria já passaram, segundo o director César Silveira, “centenas de grupos corais, de jazz e de música erudita". Diogo Ventura

São 4500 metros quadrados ocupados por espaços de ensino de Música e Dança, auditórios, estúdio de gravação e zona museológica que, nos anos 50, estavam ocupados pela maquinaria e o pó de uma fábrica de moagem de cereais. Até ao final da primeira década do século XXI, a estrutura era olhada como uma ruína irreparável que simbolizava uma ténue referência da arqueologia industrial. A Câmara Municipal de Serpa resgatou-a e, desde 2011, é um lugar onde a arte se respira.

O projecto, iniciado pelo ex-presidente da câmara João Rocha no final da primeira década do novo século, pretendia concretizar uma estratégia mais ampla em relação ao desenvolvimento cultural. Representava uma das componentes de um programa cultural que integrava o plano de salvaguarda do centro histórico da cidade alentejana, assim como o lançamento da candidatura do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade. “Pretendíamos”, explica João Rocha, “algo ligado às músicas do mundo”, que a dinâmica comercial subverteu para dar primazia às correntes musicais anglo-saxónicas e eurocentristas.

“Pretendíamos uma ligação mais intensa a uma forma mais especializada das músicas do mundo, como o tango, o samba, as músicas cabo-verdianas, o flamenco e o cante alentejano”, sintetiza o ex-autarca, reconhecendo que se tratava de uma iniciativa que tinha de se confrontar com os (maus) hábitos instilados nos gostos da população. O então ministro da Cultura brasileiro Gilberto Gil chegou a deslocar-se a Serpa para se inteirar do projecto que a autarquia pretendia materializar, no âmbito do Centro Internacional de Músicas e Danças do Mundo Ibérico – Musibéria.      

O centro “abriu portas em 2011 e já levámos com duas crises [a financeira e a da pandemia] em menos de uma década”, sublinha César Silveira, de 36 anos. O director do Musibéria realça a importância da sua criação para o transformar “num ponto de encontro da diáspora da língua portuguesa e espanhola, que se estende a África e América Latina na música e na dança”. O propósito reside no cruzamento entre as influências que chegam a Serpa e as que daqui partem para o mundo ibero-americano e não só.

A Casa do Cante, outra instituição que antecedeu o aparecimento do Musibéria, está no centro da sua criação. Serpa tinha até há pouco tempo 16 grupos corais e cada um actua com quase duas dezenas de elementos. “Se contarmos com os familiares, o impacto do cante alentejano é imenso”, acrescenta, revelando que pelo estúdio de gravação do centro já passaram, ao longo de quase uma década, “centenas de grupos corais, de jazz e de música erudita. Também se gravou rock e hip-hop”, enumera o director do Musibéria, que conta também, desde 2018, com uma editora discográfica, sugestivamente chamada Respirar de Ouvido.

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Desde 2018, o Centro conta também com uma editora discográfica, sugestivamente chamada Respirar de Ouvido. Diogo Ventura

Criar com vista para a planície

Por se tratar de um projecto que abrange outras formas artísticas, o centro desenvolve projectos através daqueles que chegam a Serpa para desenvolver as suas propostas artísticas vindos dos mais variados pontos do mundo, sobretudo de África, América do Sul e Espanha. “Acolhemos gente de todo o lado. Recebemos os vários Brasis musicais a par da Argentina”, observa César Silveira. “Vêm para cá viver e partilhar as suas experiências musicais.”

Esta mais-valia que o centro Musibéria foi incorporando faculta aos professores permanentes o contributo periódico dos artistas que estão em residência ou vêm apenas gravar no estúdio, promovendo em conjunto oficinas sobre música e dança, sobretudo para crianças dos infantários e população idosa. Em média, cerca de 80 pessoas recebem diariamente aulas teóricas e práticas nas duas componentes leccionadas e ainda em artes visuais. Com a extensão das actividades às freguesias, “o seu número irá aumentar”, admite o director do centro, frisando que o propósito passa por oferecer à comunidade de Serpa, para além do cante, o flamenco, dança contemporânea e projectos curriculares criados no centro para contrapor aos modelos eurocentristas ou anglo-saxónicos.  

A componente de aprendizagem musical estende-se ao piano, violino e violoncelo. O jovem director acrescenta um outro elemento que ajuda nas opções dos que chegam a Serpa para valorizar as suas propostas artísticas: as salas de piano oferecem uma vista soberba sobre a planície ainda não coberta por olivais intensivos.

Não é só Mozart ou Beethoven que se ouve nas oficinas do centro. Num dos seus corredores estão expostas as fotografias dos que actuaram ou ensaiaram a sua criatividade em Serpa: João Diogo Leitão com viola braguesa, António Chainho que ali gravou o álbum Cumplicidades na comemoração dos seus 50 anos de carreira, Pedro Caldeira Cabral, e tantos outros, expondo uma simbiose entre a música popular e erudita. Ou como disse José Valente ao PÚBLICO, que executa obras com viola de arco, o centro de Serpa “abre as portas tanto à música erudita como improvisada ou feita a partir de um outro ambiente e sentido diferenciador da vertente comercial”.

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As salas de piano oferecem uma vista soberba sobre a planície, numa casa "onde as coisas acontecem na calma e sem stress”, elogia o coreógrafo Bruno Alexandre. Diogo Ventura

“Um meteorito que implodiu em Serpa”

Também Joana Gama, pianista portuguesa que se desdobra em múltiplos projectos quer a solo, quer em colaborações nas áreas do cinema, da dança, do teatro, da fotografia e da música, destaca a qualidade dos meios que o Musibéria oferece para trabalhar. “O espaço é muito calmo e a gastronomia é maravilhosa.” Recorda um momento em que, por causa de um concerto, teve de se conter – “mas depois desforrei-me com o manjar que me foi oferecido no [restaurante] Molhó Bico”.

Já gravou em Serpa “num espaço físico acolhedor e com um bom piano no estúdio e um bom piano no auditório”, elogia, realçando o sossego quando trabalha nas instalações do Musibérica, “com uma equipa muito pequena mas sempre muito disponível e competente”. Foi também ali que terminou a sua tese de doutoramento em 2016.

“O Musibéria é um segredo bem guardado”, remata Joana Gama, frisando que, ao longo da última década, “tem apoiado muita gente e já conta com muitos CD gravados”, realça a jovem pianista. “E não se promovem.”

César Silveira justifica a discrição do trabalho realizado. “Os que nos procuram querem estar na sombra e na margem, longe dos holofotes para potenciar a sua capacidade criativa.”

José Valente é a prova deste propósito: “Enquanto músico, preciso de um estúdio e o equipamento do Musibérica é essencial por causa do seu director e de todos os que lá trabalham, um grupo de jovens dedicados e competentes que estão bem orientados. Quem lá trabalha pauta-se por ser transparente e honesto.”

E acrescenta: “Noutros lugares instituídos de outros valores e obrigatoriedades, marcados pela rotina da sobrevivência, perde-se o rasto ao impulso da liberdade criativa. No Musibéria este valor maior não se perde.”

Para o coreógrafo e professor de dança Bruno Alexandre, o centro “é um meteorito que implodiu em Serpa, onde as coisas acontecem na calma e sem stress”. Bruno não poupa nos elogios: “Um espaço onde se está bem e se é cuidado. Uma casa onde somos bem tratados.”  

O coreógrafo partilhou sobretudo com as crianças de Serpa conversas sobre dança criativa e dança contemporânea, transmitindo-lhes conceitos sobre como experienciar o corpo. “Foram muito curiosos e enriquecedores os diálogos quando pedi ao público (alunos, pais e familiares) que comentasse o meu trabalho.”

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O auditório com 138 lugares é um dos equipamentos do Centro, que conta também com estúdio de gravação, salas de música, estúdios de dança e galeria. Diogo Ventura

Sustentabilidade e intervenção social

Quanto custa à Câmara Municipal de Serpa manter em actividade o Musibéria? Tomé Pires, presidente da autarquia, reconhece que o financiamento do projecto “é uma permanente dor de cabeça”. “Em média, custa-nos 150 mil euros anuais”, revela, “mas os resultados aliviam o esforço despendido”. O objectivo reside na independência financeira. “Embora não seja fácil, mesmo assim, temos vindo a reduzir os encargos”, observa o autarca, referindo que as iniciativas do centro vão passar a abranger os contratos locais de desenvolvimento social (CLDS) para atenuar o impacte dos problemas de cariz social que afectam o concelho de Serpa: integração de imigrantes e apoio ao envelhecimento activo.

Com efeito, o Musibéria vai estender a sua acção aos núcleos de imigrantes que chegam ou os que já se estabeleceram no concelho, valorizando as suas especificidades culturais, sobretudo as que se expressam através da música e também da dança. “É uma forma de promover a sua integração na nossa comunidade”, salienta Tomé Pires.

Contudo, outra realidade toma corpo e aumenta as suas preocupações: “Tememos que outras entidades, que podiam competir connosco, possam desaparecer.” O autarca refere-se ao movimento associativo, que “está a desaparecer” na região. E o fenómeno pode vir a deixar a experiência cultural de Serpa como uma ilha isolada num território onde, progressivamente, as propostas culturais parecem deixar de fazer sentido.

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