Uma pessoa é a sua própria casa

Uma pessoa é a sua própria casa, pensou. E pesou o peso e a leveza destas palavras. A sua própria casa, a pessoa. Necessário seria então cuidar dessa casa, mantê-la limpa, arrumada, arejada.

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Noah Naf/Unsplash

Os primeiros meses desse ano implodiram toscos e imprevistos, como uma árvore de fruto que assumira os seus galhos imberbes por um período interminável. O clima esteve estranhamente favorável, permitindo a produção inesperada de alguns frutos. Nessas primeiras semanas, pôs a casa à venda e, surpreendentemente, apareceu-lhe um comprador. Convidaram-na a dar aulas na faculdade, após tantos meses sem trabalho remunerado.

Sentia que a casa mudara. Reparou melhor na luz da manhã, na loiça lavada a reluzir no escorredouro, na gargalhada do filho durante uma queda alheia visionada no computador. Tudo coisas que antes pareciam opacas, distantes, surgiam agora como novas, uma oferenda do tempo, daqueles tempos, para si. Como se dentro de si se tivessem escancarado as portadas de um novo mundo. Ficara novamente ávida de coisas belas e boas, as únicas que permitiria que entrassem na sua casa.

Ainda que a melancolia a auscultasse pontualmente, a sensação de maravilhas por conhecer abrira-se-lhe, e fazia tenção de segurar essa sensação o mais que pudesse. Sabia que se tratava de uma vaga, já antes acontecera na sua vida; por isso, não tencionava deixar escapar o fluxo das coisas, agarrando-se com força à tábua de salvação surgida sabe-se lá onde, talvez dentro de si. Não se tratava de fazer tábua rasa, a bagagem vinha consigo, mas decidira arrastar as malas, pô-las a flutuar, amarradas a uma corda, aliviando assim o peso da bagagem.

Uma pessoa é a sua própria casa, pensou. E pesou o peso e a leveza destas palavras. A sua própria casa, a pessoa. Necessário seria então cuidar dessa casa, mantê-la limpa, arrumada, arejada. Os vidros asseados, transparentes, permitindo ver e ser visto através do olhar exterior e do seu próprio reflexo. No dia da mudança de casa, não se despediu das paredes que deixava para trás, como sempre fizera com as casas anteriores; deixara de ser necessário. Penteou-se e engraxou os sapatos, e como um caracol, apertou o seu casaco e o do filho.

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