Tempestade perfeita

Já se podia imaginar que a corrupção não parava à porta dos tribunais, mas a passagem do abstrato ao concreto mostra a realidade com uma outra força. Traz-nos ao mundo real.

Não é próprio da estirpe dos poderosos multibilionários vergarem-se perante as leis da República, sobretudo aquelas que defendem o bem público. Estas, no entanto, já não são obstáculos totalmente intransponíveis, dada a predisposição daqueles para se focarem nos meios para atingir os fins – a versatilidade de quem tem um longo e histórico rasto de atrair, seduzir e comprar. Sim, o dinheiro é tudo para quem o tem como cisco. É preciso saber fazer falar o “vil metal”. Eles sabem.

Ademais, é hoje dominante que os donos do dinheiro também o são de quase tudo, até das almas dos cidadãos, é o insustentável poder do ter. Os compradores de almas vivas existem, as almas mortas eram compradas no romance genial de Nicolau Gogol.

Só o poder destrambelhado do presidente do SLB justifica o alegado telefonema para o Tribunal de Sintra a pedir satisfações face ao atraso de uma decisão que envolvia a empresa do filho.

Já se podia imaginar que a corrupção não parava à porta dos tribunais, mas a passagem do abstrato ao concreto mostra a realidade com uma outra força. Traz-nos ao mundo real.

O processo Lex bateu com força no Tribunal da Relação de Lisboa e mostrou a facilidade com que aqueles desembargadores fizeram jeitos uns aos outros; e, pelos vistos, não foram só jeitos. Há jeitos e jeitos.

O problema, para além dos implicados, é outro, o de saber se aquela voracidade pelo dinheiro apenas diz respeito aos visados na acusação.

A justiça é feita por mulheres e homens e, como tal, passível de todas as humanas vulnerabilidades. Porém, aos juízes são exigidas qualidades acima da média, dado o seu poder enorme sobre a vida dos cidadãos tanto na esfera da Família, do Cível, como do Crime, do Fisco e da Administração.

É suposto que aos tribunais superiores cheguem os melhores. E se no Tribunal da Relação de Lisboa isto acontece, o mesmo não acontecerá em Évora, Guimarães e no Porto? A dúvida num país descrente é terrível.

O que poderá acontecer é o seguinte: perante qualquer sentença mais estrambólica ou inesperada, para além do erro de julgamento ou da ignorância humana, será quase impossível deixar de pensar se quem julgou o fez sem isenção. É muito importante que também aqui não se agrave a desconfiança nas decisões judiciais. Não se pode deixar arrombar a última porta do Estado de Direito. Os magistrados têm de redobrar os esforços para contribuir para credibilizar a Justiça. E todos os outros – advogados e funcionários judiciais.

A loucura alienante que invadiu o mundo do futebol, como se o amor ao clube fosse um ideal libertador, chegou também a certos magistrados –​ basta olhar para o Facebook.

Mas não é só aos juízes, é aos próprios dirigentes políticos, aos governantes, e ao próprio primeiro-ministro. Claro que todos podem ter um clube de simpatia. Mas essa simpatia não pode aparecer como se fosse uma envolvência de tal modo intrínseca entre o mundo do futebol e da política que inquine o ambiente democrático onde estamos inseridos. O futebol é um desporto e atualmente um grande negócio de muitos e muitos milhões. É estranha esta atração.

Se o presidente do Benfica considera que o país é demasiado pequeno para o seu clube, dá para detetar a ideia vesga de julgar que o cargo o coloca acima da lei. A gula é um pecado mortal. Pela boca morre o peixe.

Seria importante aprofundar, no mundo do futebol, as ligações de certos dirigentes com o mundo opaco de negócios de vão de escada por onde passam milhões e milhões. E o percurso de certos figurões que se tornaram famosos por terem sido adeptos fervorosos de grandes clubes e depois se tornam candidatos políticos de extrema-direita, ironia das ironias contra o sistema onde foram paridos.

Se futebol e política é uma mistura explosiva, que dizer de futebol, política e justiça? É a tempestade perfeita.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção