Lesados do Banif: e quando o Estado é o dono?

No Banif não houve (aparentemente...) falsificação de contas. No Banif não houve (formalmente) associação criminosa. Mas houve – no mínimo – abuso do nome do Estado para credibilizar vergonhosas acções! E houve ausência de Estado para – também no mínimo – defender os seus cidadãos e a honra do seu nome.

Os lesados do BES ocupam (muito justamente) o noticiário nacional – porque foram lesados, enganados e vítimas de crime. E o Estado (muito justamente) assumiu as suas queixas e as suas perdas, havendo até o anúncio de que se preparam acções judiciais, na sua qualidade de vítimas de crime, contra o alegado criminoso, Ricardo Salgado. Mas, que fazer quando era o Estado o dono do banco que originou os lesados? Que fazer quando o Ricardo Salgado dos lesados do Banif é o Estado português?

Vale a pena recordar, de uma forma muito sucinta, o processo que culmina nos lesados do Banif.

O Banif era um banco sediado no Funchal com grande penetração, além da Madeira, nos Açores (recorde-se que tinha adquirido o Banco Comercial dos Açores, a maior instituição bancária do arquipélago), no continente e nas comunidades de emigrantes da África do Sul, Venezuela e Costa Leste dos Estados Unidos. Em matéria de depósitos e investimentos prevaleciam os pequenos aforradores, dos quais muito milhares de emigrantes.

Em determinada altura, por razões relacionadas com o cumprimento dos rácios financeiros obrigatórios na actividade bancária, houve necessidade de se proceder à chamada capitalização do Banco (um processo, obviamente, previamente autorizado pelo Banco de Portugal e demais instituições intervenientes nestes processos). Como, numa primeira fase, essa capitalização passou pelo recurso ao apoio estatal, ficou este, Estado, com a maioria (bem acima dos 90%) do capital do Banif – ou seja, passou efectivamente a ser o dono do Banif. Tal facto, e a vontade do Estado em reduzir ou abandonar a sua tão forte presença no Capital Social do banco, levou a que essa campanha de capitalização não só prosseguisse como fosse incentivada, necessariamente devidamente autorizada pelas instituições oficiais de supervisão.

E como é que na prática se fez a angariação do capital? Abordando os pequenos aforradores, os depositantes de contas a prazo de poupanças de uma vida, os agricultores na Madeira e os Açores, os comerciantes locais, os emigrantes crédulos de um banco na sua pátria e região, argumentando algo muito simples e convincente: peguem nos seus depósitos e utilizem-nos para comprarem obrigações subordinadas, o juro sempre é um bocadinho melhor e a operação é seguríssima, “tão segura como se fosse a CGD”, basta ver “que o Estado até é o dono”.

(Tudo isto está provado e documentado no exaustivo trabalho realizado pela Comissão de Peritos criada para este fim no âmbito da Ordem dos Advogados).

As acções de muitos dos agentes comerciais do Banif neste período são uma lamentável lista de iniquidades, processos enganosos e ardilosos, cinismo e desumanidade (consulte-se o Relatório da referida Comissão de Peritos, o qual é público e sem rasuras).

Houve de tudo: agentes comerciais que subiram aos pastos nos Açores para convencerem e assinar compras de obrigações subordinadas no meio das vacas, vendas por telefone baseadas na confiança no banco (por exemplo, referindo “então está decidido, passe por cá um destes dias para assinar...”), donas de casas sensibilizadas para convencerem os maridos, emigrantes enganados nas mesas dos seus clubes ou nos cafés de encontros regulares por agentes comerciais insistentes e agressivos. 

Qual o perfil destes novos subscritores de obrigações subordinadas do Banif? Um estudo realizado com base nos inscritos na ALBOA, Associação dos Lesados do Banif, revelou: muito alta iliteracia financeira, baixa escolaridade (esmagadora maioria só com a 4.ª classe), fracos recursos financeiros (há casos comprovados de necessidade de subsídio de sobrevivência) e, hoje em dia, alta faixa etária (pelo menos mais de 60 anos).

Foi este universo de pessoas que foram “enganadas” e “espoliadas” por um Banif do Estado com conhecimento dos órgãos de supervisão do Estado!

No Banif não houve (aparentemente...) falsificação de contas. No Banif não houve (formalmente) associação criminosa. Mas houve – no mínimo – abuso do nome do Estado para credibilizar vergonhosas acções! E houve ausência de Estado para – também no mínimo – defender os seus cidadãos e a honra do seu nome.

O primeiro-ministro, António Costa, teve a louvável atitude de querer perceber a situação e dar voz ao desespero dos lesados do Banif quando, numa célebre manifestação no Funchal, comprometendo-se na resolução do problema, disse alto e bom som para os presentes e para a imprensa: “Estas pessoas foram enganadas.” 

Enganadas por quem? Pelo Estado, evidentemente.

Que o Estado refaça o mal feito. Mas a tempo de refazer (parcialmente, claro) o mal feito. Porque o Estado pode não ter pressa, mas os lesados do Banif têm!

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