Importa salvar vidas mais que defender sistemas

O tempo despendido com esta nova doença não pode, de forma alguma, descurar os restantes cuidados de saúde.

Há dias, foi lançado o Movimento “Saúde em Dia – Não mascare a sua saúde”, que tem como promotores a Ordem dos Médicos e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Trata-se de uma campanha que procura levar a população portuguesa a tomar consciência das consequências que a pandemia está a ter no acesso a outros cuidados de saúde. Estive presente na apresentação da campanha e fiquei muitíssimo preocupado com algumas das informações prestadas.

Nos primeiros sete meses deste ano, comparativamente com igual período do ano anterior, consta que foram realizadas menos de um milhão de consultas nos Cuidados Primários de Saúde; se tivermos em conta apenas as consultas presenciais, então, teremos menos quatro milhões; ao juntarem-se os cuidados de enfermagem presenciais há que contabilizar menos dois milhões. Estaremos a falar, concretamente, de menos 7.016.241 milhões de contactos face a face. No que respeita a atendimentos hospitalares foram menos dois milhões; em telemedicina verdadeira (não apenas contactos telefónicos) registaram-se mais 6732. Apesar deste número significativo, fica muito aquém dos cerca de dois milhões referidos. No acesso aos serviços de Urgências estima-se que houve menos de um milhão e quanto a atendimentos de casos urgentes mais graves, menos quinhentos mil. Noutras áreas, chamaram-me a atenção o acesso a exames de diagnóstico, que foram menos 35%, e endoscopias, menos 48%.

Reconheço que fomos surpreendidos por uma nova doença e ainda não totalmente conhecida, com riscos graves para pessoas com determinadas patologias associadas. Que o Serviço Nacional de Saúde não estava preparado para novos testes clínicos e para uma inesperada e forte pressão sobre o tempo de trabalho do pessoal de saúde. Sabe-se também que são em muito maior número as mortes por causas não covid-19.

Assim, um dos grandes desafios que as autoridades de saúde têm de enfrentar se, como parece, vier a acontecer uma nova vaga da pandemia, é o equilíbrio razoável e eficaz da prestação de cuidados de saúde a todas as doenças. É preciso manter, até mesmo intensificar, a consciência responsabilizadora da população portuguesa para que não recrudesça a pandemia e, sobretudo, que não se desleixe a proteção segura, mas humanizada, dos que estiverem em risco vital.

Este zeloso cuidado obriga a uma pedagogia na comunicação das medidas que seja como o “sal na comida”, em quantidade quanto baste. Abrandar as recomendações pode levar à desvalorização da perigosidade deste novo coronavírus; o excesso de informações e recomendações pode criar negativas resiliências. Porém, o tempo despendido com esta nova doença não pode, de forma alguma, descurar os restantes cuidados de saúde. É muito prejudicial continuar a adiar exames de diagnóstico a doenças com prevalências comprovadas de mortalidade; marcar para o “não se sabe quando!” consultas e tratamentos cuja não efetivação agrave doenças já crónicas ou que, por isto, poderão passar a ser. Em saúde, como em muitas outras áreas de prestação de serviços, o contacto pessoal é fundamental. Os médicos e enfermeiros sabem-no muito bem.

Também não se pode continuar a falar, em “tom menor”, sobre a gravíssima crise socioeconómica que já se iniciou e está longe de atingir o auge da “curva” do empobrecimento do país e, consequentemente, das pessoas e famílias. É contraproducente contribuir para que se instale o medo – sempre mau conselheiro –, seja em que circunstâncias for, mas não se pode deixar de alertar para os problemas sociais que já são muito graves e ainda se irão tornar mais dramáticos. É que a morte não é só a de ordem física, muita gente morre dentro de si e para a sociedade. Este tipo de morte é mais que exclusão, é inexistência de ser. É urgente fazer algo para que este tipo de aniquilamento não aconteça.

Esteve em consulta pública o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030. Todavia, a opção foi dar mais relevância às questões económicas. Então, deve-se complementá-lo, o mais depressa possível, com um Plano de Recuperação Social em que seja considerada, como parte central, a Estratégia de Erradicação da Pobreza. A crise económica é inevitável, mas há que sermos otimistas realistas. Quero dizer, que não se deve carregar nas cores negras de que se irão pintar os próximos anos, para que não se instalem desânimos infundados nem se roube a esperança a ninguém. Há, rapidamente, que criar um rendimento de substituição ou se reforce a medida já existente para atingir os mesmos objetivos, como seja o Rendimento Social de Inserção; que retomar as políticas ativas de emprego; que combater a iliteracia informática; que criar medidas de incentivo à autonomia dos jovens/adultos. Estas poderão ser algumas das muitas medidas urgentes, tal como o acesso à habitação, a criação de creches, a implementação de novas medidas para a melhor qualidade de vida dos mais velhos; a inclusão séria das minorias; a definição de estratégias mais decididas de acolhimento a migrantes…

O importante é dignificar e salvar vidas, mais que manter e defender sistemas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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