A gigante Ruth, Lex e os perigos do oportunismo populista

Tal como com os políticos, pode render alguns votos dizer que está tudo podre, até a justiça, que comem todos da mesma gamela, mas, a curto prazo, isso significa um rombo gigantesco no Estado de Direito.

O desaparecimento físico de Ruth Bader Ginsburg, juiz do Supremo Tribunal Federal dos EUA, ainda nomeada por Bill Clinton, a segunda mulher a ascender ao mais elevado grau da hierarquia dos tribunais daquela que é a (ainda) única superpotência mundial da actualidade, correspondeu a um compromisso de campanha do ex-Presidente que, naturalmente, poderia ter sido visto como algo populista.

Talvez dela se esperasse uma posição mais conservadora e menos exposta. Décadas depois, tivemos a “Notorious RBG” a encher pavilhões de gente a querer ouvir uma octogenária, documentários televisivos e a piada fina que caracterizava esta admirável mulher que comentava que para ela era uma admiração ver jovens a quererem tirar selfies com uma senhora da sua idade.

Ginsburg foi sempre descrita como uma feminista. Percebe-se bem que o tempo em que viveu exigia uma abordagem mais “musculada” quanto às diferenças de oportunidades entre mulheres e homens, ainda subsistentes. Do mesmo modo, as suas posições em matéria de aborto e de outras questões fracturantes em termos dos ditos “costumes” foram sempre uma lufada de ar fresco para quem, como eu, tem uma visão liberal sobre estas matérias.

Harvard, a sua “alma mater”, dedicou-lhe palavras muito acertadas e inspiradas que a todos nos servem de referência. Juristas e não juristas. As batalhas desta mulher ultrapassaram em muito o Direito, o que faz dela alguém que, concordando-se ou não com as suas posições concretas, granjeou o respeito de todos que não sejam totalmente ortodoxos e intelectualmente desonestos. O estudo jurídico do seu legado far-se-á, mas o que desejava aqui sublinhar é o modelo de honradez e convicção absoluta no princípio da igualdade que esta juiz soube sempre ser.

Talvez por isso, não é de estranhar que Trump, numa manobra a todos os títulos mesquinha, já tenha espoletado o processo da sua substituição, quando o cadáver ainda está quente. Um processo complexo, repartido entre o Presidente e o Senado, onde os republicanos estão em maioria. Haja a decência de, em tempos de gestão corrente, se não vilipendiar deste modo a memória de Ruth, tentando que o actual Presidente nomeie três “justices” que, a assim ser, tornarão o Supremo no órgão judiciário mais conservador e centralista das últimas décadas. Que os famosos “checks and balances” norte-americanos impeçam este atentado à ética republicana, não a do partido de Trump (nessa não tenho fé), mas a da “res publica”.

Ora, cá em casa foi notícia a acusação da Operação Lex. Naturalmente que entre um monstro do Direito e a circunstância de juízes de tribunais superiores e advogados, para além de outros cidadãos, estarem entre os acusados, provoca um enorme contraste. E é também habitual que este momento processual traga à praça pública oportunismos populistas que não beneficiam ninguém.

Presumidos todos inocentes até ao trânsito em julgado de uma eventual decisão condenatória, é óbvio que, a provar-se o descrito em mais de 400 páginas de acusação do MP junto do nosso Supremo, é gravíssimo o que terá acontecido e espera-se uma decisão em conformidade. Abomino que se peça uma “condenação exemplar”, ao estilo da prevenção geral negativa mais encarniçada, pois não é esse o foco de intervenção do nosso Direito Penal: julga-se o facto e não o sujeito.

Não se pode é tomar a nuvem por Juno e dizer que todos os magistrados (e advogados) são corruptos, que todas as distribuições de processos são viciadas, que se compram e vendem decisões “à la carte”. Basta andar algum tempo no mundo dos tribunais para saber que isto é uma tremenda falsidade e que a quase unanimidade destes profissionais são probos e competentes, administrando a justiça em conformidade com a lei e a sua convicção, como lhes obriga a Constituição e as leis.

Tal como com os políticos, pode render alguns votos dizer que está tudo podre, até a justiça, que comem todos da mesma gamela, mas, a curto prazo, isso significa um rombo gigantesco no Estado de Direito, pois quem o proclama está apenas a ajudar a descredibilizar um órgão de soberania – os tribunais – que é central ao nosso mais lídimo modo de vida. Separe-se o trigo do joio e, por outro lado, também me parecem precipitadas algumas vozes que clamam por alterações em sede de inspecções ou outros temas ligados à organização interna e ao governo das magistraturas. Nunca se legisla em cima de acontecimentos concretos, como nunca se começa a construir uma casa em cima de terra que ainda está a fumegar.

Uma nota de alento, a terminar. Acabou muito recentemente a fase das provas orais de acesso ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários, a nossa escola da magistratura), por entre apertadas – e necessárias – medidas de saúde pública. É sempre um enorme gosto participar destes júris que, como bem os apelida Edgar Taborda Lopes, director-adjunto da instituição, são “a maior festa da comunidade jurídica portuguesa”, por juntarem magistrados judiciais e do MP, advogados, professores universitários e, na via profissional, cidadãos de formação não jurídica.

Não tenho presente evento em que quem trabalha com o Direito seja chamado a apreciar aquelas e aqueles que desejam ser juízes ou procuradores, num concurso que, tanto quanto conheço, é dos mais exigentes para qualquer carreira no nosso país. De parabéns o director do CEJ, João Silva Miguel, os outros dois directores-adjuntos, Paulo Guerra e Luís Pereira, todos os funcionários e as e os colegas que responderam a este desafio. Assim, de modo muito modesto, também honramos a memória de Ruth.

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