Carlos, aqui no burgo ainda há fotojornalistas com talento

Percebi cedo que não eras um fotojornalista da moda. Não fotografavas porque era giro. Fotografavas com convicções fortes e de coração cheio. Foi o sumo que nos deixaste, Carlos. A mim e a uma nova geração de fotojornalistas.

Já não me lembro do dia nem do ano. Sei que eu era ainda jovem. Por isso, já lá vão muitos anos que te conheci, Carlos Gil. Para quem não sabe, o Carlos foi um dos maiores fotojornalistas aqui do burgo. Sei que te abri a porta da casa dos meus pais. A ti e a um amigo comum, o José Soudo. Entrou aquela figura alta, de voz forte, cabelo farto e intenso bigode. Desde os breves segundos que demorou o aperto de mão, tornámo-nos amigos. Fraternos. Para a vida. Como se querem os verdadeiros.

Mais tarde, fomos formadores no Cenjor – Centro de Formação para Jornalistas. Enquanto eu me esforçava a explicar as múltiplas linguagens e vantagens do fotojornalismo, tu contavas as tuas intensas histórias desde a guerra do Iraque a El Salvador, passando pelo funeral de Sua Excelência, o Presidente do Conselho, António Oliveira Salazar à cela em Caxias de Otelo Saraiva de Carvalho. As tuas experiências como fotógrafo apaixonado e militante. E eu, quando estava perto de ti, deixava de ser formador e passava à condição de formando. Só queria aprender naquela corrente avassaladora de experiências e emoções. Percebi cedo que não eras um fotojornalista da moda. Não fotografavas porque era giro. Fotografavas com convicções fortes e de coração cheio. Foi o sumo que nos deixaste, Carlos. A mim e a uma nova geração de fotojornalistas.

Dizias tu mil vezes ou as vezes que fossem necessárias: “Os fotojornalistas não se querem nas redacções — os fotojornalistas querem-se na rua!” Neste tempo que nos virámos quase todos do avesso, fazes falta, pá. Seguramente não ficavas em casa. À janela ou de pantufas. Eras um genuíno jornalista. Já te estou a ver à procura de histórias. Incansável. Já estou a saborear as tuas fotografias. Tão simples e tão brilhantes. E fica o amargo de boca. O arrependimento. Nunca arranjei espaço em qualquer parede branca para colocar a tua fotografia. Aquela que um dia me ofereceste. Fotografada ainda antes de eu nascer. As noivas de Santo António. Sorridentes. Alegres. Riam, não para os noivos. Riam, sim, para ti, Carlos. Um homem de vida cheia e de coração eterno. Desculpa, companheiro. Neste tempo de medo, as tuas noivas fazem todo o sentido. Trazem alegria. Sentido à vida. Fica a promessa. Sairão do grande envelope que acumula pó. Tenho já sítio para as tuas noivas. Sítio para ti, sempre tive. Tu sabes bem.

Quando a paranóia colectiva rebentou e se decretaram estados de emergência e de alma, parece que Hollywood ou Bollywood vieram até nós, país à beira-mar enterrado. Aquela frase que nos sussurram ao ouvido quando trememos na cadeira — isto é só um filme — estava agora aí, fora das grandes telas. Dentro das nossas vidas. Proclamaram o medo e a clausura. Uns actores, outros figurantes, num filme de terror e de realização manhosa. Ficaram as ruas vazias, colocaram os trabalhadores em casa com rendimentos menores e outros em casa já sem emprego. Fecharam escolas. Fecharam igrejas. Engavetaram a cultura. Suspenderam parte da democracia. Fizeram a lavagem cerebral com números em catadupa. Vingou o medo, a ignorância e o fatalismo. E agora chegámos aqui. Cheios de feridas por sarar. No fim, é como nos filmes, ganha sempre o mais forte. O poderoso.

E nos filmes também existem os heróis. Aqui recebem palmas à janela. Abraços fortes que ficam sempre bem em televisão de Sua Excelência, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Lêem frases comoventes. Vai ficar tudo bem. Pois vai? Tenho dúvidas cheias de certezas de que não vai ficar nada bem. Mas os heróis têm salários de merda. Muitos são precários. São todos explorados. Muitos não falam. Não reivindicam. O patrão pode despedir. Pode não gostar. E o lay-off é a salvação. E o teletrabalho o paraíso. O despedimento uma fatalidade. E o guião segue. Um guião a papel químico.

Foto
25 de Abril de 2020 na Avenida da Liberdade, Lisboa José Sena Goulão

Carlos, desculpa, o teclado escorregou para a esquerda. Sou um perigoso esquerdista, tu sabes. Desses gajos que só sabem criticar. Uns parasitas. Tu sabes lá as coisas de que já me apelidaram. E agora há uma nova forma de lavar roupa encardida: chamam-lhe redes sociais. Não ias gostar, se bem te conheço. O que ias gostar mesmo é de um projecto que se vai transformar em livro. Chama-se EverydayCovid – Diários Fotográficos em Estado de Emergência. Tudo começou no Instagram, uma moda das redes sociais. Nem tudo é mau. Cumprindo à risca a tua frase, os fotojornalistas foram para a rua. Com coragem, digo eu. Com dever de missão, dirias tu. Documentaram até à exaustão o filme que o país viveu e ainda vive, o estado pandémico a que isto chegou.

EverydayCovid é a prova de que a união faz a força: fotojornalistas de talento, fotojornalistas precários, fotojornalistas de recibo verde, fotojornalistas de paixão. Tantas e tantas fotografias me ficaram na cabeça. Tantas e tão boas. Não pelo apego à estética ou a qualquer figura de estilo. Apego, sim, à denúncia. Apego, sim, ao puro jornalismo. E talvez fosse bom não ficarmos por aqui.

Carlos, meu grande companheiro, as tuas apaixonantes histórias, melhores que qualquer lição de câmaras, objectivas e seus derivados, brotam em campo minado. Não do Iraque, que tanto gostavas de falar e bem conhecias, mas de campo minado pela força das ideias de gerações livres. Nesta folha de papel de jornal — ainda existem, Carlos — ou no monitor de um qualquer telemóvel, não sei o que tens por aí, deixo-te esta mordaz fotografia de José Sena Goulão, um jovem talento e fotojornalista da Lusa — ainda existe também. Uma fotografia-síntese do filme cómico e trágico a que o nosso país chegou.

Tenho saudades tuas, porra.

Sugerir correcção