O “caso AAA” revela a desagregação económica de Angola

Durante anos, em Angola, certos beneficiários políticos de crédito nem se julgavam obrigados a pagá-lo. O fim da seguradora AAA, que detinha o monopólio dos seguros do petróleo, mostra também as lutas ferozes entre famílias com altos rendimentos.

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Isabel dos Santos veio dizer que acabou com os contratos da AAA quando entrou na Sonangol, mas os seus adversários dizem que a decisão já tinha sido tomada antes dela Nelson Garrido

As investigações em Genebra e Luanda sobre os movimentos bancários de Carlos São Vicente, executivo chefe da ex-seguradora angolana AAA – em fase de liquidação – levantam elementos centrais sobre a própria natureza da economia criada em Angola. Entre eles, os impactos do extrativismo petrolífero, as funções principais atribuídas à banca, os interesses nas importações ou nos contratos com o exterior e as lutas ferozes entre grupos de altíssimos rendimentos, muitas vezes autênticas linhagens.

A “triplo A” foi criada no quadro da Sonangol e, por sucessivos aumentos de capital, passou a ter São Vicente (ex-técnico da petrolífera) como acionista principal. As constantes referências a outros técnicos ou gestores da Sonagol no relacionamento com a AAA suscitam a interrogação de pesquisa se São Vicente é, de facto, detentor de 90% do capital ou se representa mais pessoas. Seja como for, a seguradora dispôs, durante anos, do monopólio em seguros de risco e gestão de fundos de pensão para todo o setor petrolífero de Angola, por adjudicação direta, ou seja, sem concurso.

Este método contratual está longe de ser o primeiro em Angola. Já no início da década de 1980 um contrato foi assinado, também sem concurso público, entre o então Ministério da Energia, uma empresa da URSS fornecedora de maquinaria e a construtora brasileira Odebrecht para construção da barragem de Kapanda. Este contrato será, sem dúvida, bastante mencionado a breve trecho em virtude da abertura, no Brasil, de inquérito sobre a atividade da referida construtora em Angola.

Nos dois casos nota-se ausência de preocupações abrangentes com os respetivos contextos: o monopólio de facto da triplo AAA contrariava normas elementares de competitividade; por sua vez, Kapanda não seguiu condições contratuais de manutenção adequada e fiscalizada persistindo, assim, os constantes cortes de eletricidade, causa dos défices em Angola inibidores de projetos produtivos.

Tais contratos e as enormes transferências a que deram lugar, implicam um certo tipo de entidades bancárias, transformadas em grandes conversoras da moeda nacional em divisas e pagadoras com estas. De facto, um olhar sobre transferências aponta para grandes volumes rapidamente deslocalizados por pessoas privilegiadas sem necessidade de justificativos eficazes e, por outro lado, o elevado desequilíbrio entre esta função bancária e a função de crédito.

Há pouco mais de uma semana, o atual governador do Banco Nacional de Angola afirmou num fórum em Luanda que o crédito equivale a 16% dos ativos bancários acrescentando, segundo a agência oficial Angop, que “o credito bancário não é mais do que 12,5% no PIB não petrolífero” e no setor de particulares, não atinge 3%, sendo a área comercial a mais beneficiada, em parte para importações.

A maior pressão sobre a banca situa-se no acesso a moeda convertível ao câmbio oficial, devido aos privilégios na transferência de fortunas e obtenção de divisas para importações, muitas vezes sobrefaturadas e com depósitos no exterior. Os interesses decorrentes têm sido obstáculo à criação de atividades produtivas em Angola pois dispensariam várias importações.

Estas pressões e práticas têm décadas e, somadas à queda dos preços do petróleo, explicam a erosão das reservas, a escassez de meios de investimento suscetíveis de reduzir a recessão que dura desde 2014 e boa parte do crédito mal parado. Durante anos, certos beneficiários políticos de crédito nem se julgavam obrigados a pagá-lo.

Como resultado, a soma dos bancos angolanos não constitui um verdadeiro sistema e provavelmente nenhum desses bancos resistiria a um teste de stress minimamente rigoroso.

Em 2016, a Sonangol encerrou o seu contrato com a AAA e Carlos São Vicente (individualmente ou com eventual grupo) começou a preparar a liquidação da empresa, gesto tradutor de interesse empresarial apenas em situação monopolizadora. As transferências bancárias para o banco SYZ de Genebra e deste para outros, tornaram-se mais frenéticas e a autoridade reguladora helvética iniciou em 2018 uma investigação com congelamento de contas. Após a Câmara Penal do Cantão de Genebra rejeitar recursos para levantamento da decisão, esta foi confirmada no ano em curso. O assunto tornou-se público numa altura em que um ex governador do BNA e um filho do ex-Presidente José Eduardo dos Santos foram condenados por transferência ilegal de quinhentos milhões de dólares.

A publicidade em torno das contas de São Vicente aumentou por ele ser casado com a ex deputada Irene Neto, filha do falecido Presidente Agostinho Neto e detentora de uma das contas congeladas. O assunto ganhou dimensão política com protestos da família Neto contra a menção do nome do ex-Presidente. Na verdade tal menção não aponta qualquer responsabilidade, decorrendo apenas da pergunta que se faz hoje com frequência, em abertura de contas, sobre se o titular está politicamente exposto. Ter familiares em posições de topo nos aparelhos de estado é uma exposição.

Muito exposta politicamente e também beneficiada em contratos e acesso bancário devido a laços familiares, Isabel dos Santos, há algum tempo na defensiva passou ao ataque, com base no facto da rescisão dos contratos entre a Sonangol e a AAA ter-se dado em 2016, ano em que ela assumiu o cargo de PCA da petrolífera. Em entrevista à radio luandense MFM, declarou que os preços praticados pela ex seguradora eram 70% acima das ofertas no mercado e decidiu outros vínculos na área dos seguros.

Porém, adversários e pessoas próximas da antiga Administração dizem que o protagonismo reivindicado por Isabel dos Santos esconderia uma mentira. Se ela assinou novos contratos, a decisão de rescisão com a AAA foi tomada meses antes dela chegar à Sonangol. A luta vai continuar e acirrar-se porque os detentores das maiores riquezas de Angola (onde quer que se encontrem) têm um comportamento duplamente voraz: querem os níveis máximos de enriquecimento e vêm os outros como concorrentes capazes de lhes diminuírem as oportunidades nesse sentido.

Há aqui um fator estrutural. As vantagens e privilégios graças a influências políticas ou familiares (às vezes é a mesma coisa) não implicam intervenção direta dos altos lideres ou chefes de família, pois laços muito conhecidos exerciam um efeito intimidatório (ou de cumprimento de obrigação) nos escalões de execução, pelo menos até há muito pouco tempo. Neste âmbito estrutural, esses executantes agiam disciplinadamente e, aproveitavam para se incluírem a si próprios e alguns amigos, criando uma camada de alguma dimensão, dividida quanto a mais ou menos benefícios e muito bem inserida mundialmente.

Ligação à Odebrecht

As ligações externas são-lhes indispensáveis pois o objetivo é a formação de fortunas em moeda forte e aquisição de propriedades ou títulos no estrangeiro. Uma dessas ligações foi durante anos a Odebrecht. Depois de Kapanda este grupo ganhou sucessivas adjudicações, não sujeitas a concursos públicos e transparentes, em infraestruturas, urbanizações, extração diamantífera e petrolífera, talvez devido a bom posicionamento no âmbito de créditos brasileiros a Angola ( é uma suspeita em investigação).

Envolvida em grandes escândalos no Brasil, em virtude de contratos com a Petrobrás ligados a contribuições financeiras a partidos políticos, a Odebrecht teve altos executivos presos e foi condenada a multas bilionárias que procura pagar com venda de ativos diversos. Entre eles toda a sua presença em Angola. No caso dos diamantes, por exemplo, a venda foi feita à empresa russa Al Rosa.

As averiguações no Brasil vão provavelmente levar a Procuradoria-Geral da República de Angola a abrir idênticos procedimentos, como já ocorreu com outros casos iniciados no exterior. Esperam-se revelações importantes não só sobre o papel da Odebrecht mas dos contratos de obras públicas em geral e não surpreenderá ninguém se, por esta via também, tenham sido criadas fortunas pessoais de vulto, até aqui desconhecidas.

Aliás, o “caso São Vicente” é agora visto como mais um, com a possibilidade de envolvimento de outras pessoas e desdobramentos. As acusações mútuas entre milionários e bilionários podem, por sua vez, proporcionar mais conhecimento sobre um período onde Angola perdeu enorme oportunidade de construir uma economia em desenvolvimento e, como agravante, endividaram-na. Agora, tanto a perda de oportunidade como a dívida apresentam faturas.

Nos últimos dias, chegou-se a acordo sobre dois anos de pagamentos adiados – e chamam-lhe “moratória” – seguida do pagamento de 28 mil milhões de dólares em seis anos. Numa economia no estado da angolana, são prazos insuficientes para gerar algo de envergadura, aliás, na contramão das definições atualizadas sobre empréstimo produtivo.

* O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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