Provedora reclama mudanças num “país de boas leis e péssimos executores”

Serviços da Segurança Social “não funcionam bem”, diz Maria Lúcia Amaral. Queixas sobre este instituto público representam mais de um terço das reclamações e toldam visão de conjunto sobre a administração pública.

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Maria Lúcia Amaral quer aumentar a visibilidade da Provedoria nas escolas e autarquias Rui Gaudêncio

A provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, identifica três problemas centrais que gostaria de ver resolvidos para melhorar o funcionamento da administração pública portuguesa: falta de rigor organizativo, com zonas negligenciadas onde “impera o desinteresse” dos poderes públicos ou da administração; falta de transição geracional nos serviços públicos; e dificuldade em adequar algumas estruturas às exigências tecnológicas.

“Sempre fomos um país de boas leis e péssimos executores — e continuamos a ser”, diagnostica Maria Lúcia Amaral, ancorando a sua percepção não apenas na experiência administrativa como provedora, mas também na sua experiência jurisdicional (como juíza do Tribunal Constitucional).

A avaliação foi feita nesta quarta-feira no Parlamento, onde respondeu aos deputados da comissão de assuntos constitucionais sobre o relatório de actividades da Provedoria de Justiça de 2019, documento que mostra, mais uma vez, que as queixas dos cidadãos estão concentradas em três grandes áreas de actuação da administração pública – Segurança Social (36%), emprego público (11%) e fisco (10%).

E, de longe, a grande percentagem das reclamações tem a ver com problemas que os cidadãos enfrentam na Segurança Social. Em 9823 queixas, mais de um terço tem a ver com este instituto. “Os serviços administrativos [da Segurança Social] pública e notoriamente não funcionam bem, mas o mal que funcionam não pode corresponder, relativamente aos outros todos [serviços do Estado], a esta percentagem”, isto é, não corresponderão à “realidade das coisas”. E para a própria Provedoria de Justiça o facto de haver um tão grande número de queixas monotemáticas é um problema, porque impede que este órgão de justiça informal tenha uma visão de conjunto.

A constitucionalista frisou que é fundamental resolver os problemas das pessoas que se dirigem a este órgão de justiça informal. A provedora, disse, deve ser um instrumento auxiliar de boa administração e, para tal, “tem de ser capaz de compreender aquilo que vai mal para além da miríade de situações concretas, e de ter uma actuação crítica com uma visão sistémica”.

Maria Lúcia Amaral não deixou de referir os problemas da Segurança Social, mas frisou que os serviços públicos são marcados por uma grande diversidade. Mas quando faz um zoom out e olha para o conjunto organizativo do Estado português, identifica padrões e consegue identificar três grandes problemas que são, ao mesmo tempo, desafios. O primeiro é um problema de rigor organizativo. “A qualidade de um serviço público depende muitíssimo da dedicação das pessoas que nele estão. E os nossos serviços públicos são marcados, neste ponto, por uma imensa heterogeneidade que é aleatória. Tem pessoas de uma dedicação extraordinária — para além de tudo o que é exigível — e tem zonas que foram descuradas e onde a negligência impera”. Nessas zonas onde o Estado se desinteressa entende ser preciso encontrar uma redignificação dos quadros da administração pública e das suas chefias, de forma a que estes “imprimissem racionalidade e organização aos serviços”.

O segundo problema que encontra é o de “transição geracional”. “Estamos a viver nos serviços públicos portugueses um corte geracional notório e evidente”, que, diz, não foi combatido com uma “transição suave de gerações”. A provedora disse que há novas gerações com um “potencial riquíssimo” que não têm sido “minimamente” atraídas para as estruturas públicas e que, não se cruzando com as gerações de quadros experientes da administração pública, também não extraem delas a experiência, “as boas práticas” e a “dedicação”, impedindo a administração pública de beneficiar dessa troca que depende da renovação contínua.

Ao mesmo tempo, diz, há um terceiro problema que tem que ver com a dificuldade de adequar as estruturas organizativas “desfasadas do tempo” às novas exigências tecnológicas. Maria Lúcia Amaral deu um exemplo concreto. Em Janeiro deste ano, a provedora foi visitar o seu homólogo espanhol, que, por ser auxiliado por provedorias regionais de forma supletiva, tem na administração central “um volume de trabalho que não é superior” à provedoria portuguesa. E, apesar de ter uma dimensão de trabalho semelhante, só na área informática, diz, contém uma equipa de 12 jovens que se encontrava a preparar a substituição de práticas manuais de recebimento de documentos por meios de inteligência artificial. “Eu quando quero ter uma actualização, fazer um novo site, tenho de recorrer a outsourcing e não consigo; é uma dificuldade extrema...”.

O aumento do número de queixas à provedora, diz a própria, tem que ver com visibilidade crescente do órgão de Estado e com a maior facilidade com que hoje os cidadãos podem apresentar exercer através de meios digitais.

Um dos problemas está relacionado com os atrasos na atribuição das pensões, sobretudo, de velhice. “Essas pessoas tiveram da parte dos nossos serviços [da Provedoria] uma ajuda caso a caso fundamental. E essa ajuda caso a caso foi chamando mais questões”. Atender a todos essas situações concretas, com a Provedoria demasiado absorvida “pela urgência das questões dificílimas” que lhe chegam tem um preço, a de a provedora perder a visão de sistema, alertou Maria Lúcia Amaral. Por isso, o facto de as reclamações estarem tão concentradas na área da Segurança Social levou a provedora a pensar num programa de acção, que ainda não conseguiu ser implementado por causa da pandemia, para dar visibilidade deste órgão de Estado junto das autarquias, das escolas e de entidades da sociedade civil.

O Provedor de Justiça é um órgão do Estado a quem os cidadãos podem recorrer quando se sentem prejudicados pela administração pública e poderes públicos ou quando vêem os seus direitos fundamentais violados.

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