A orgia do poder

Digam deles o que disserem, tenham eles os defeitos que tiverem, é também por causa deles que pessoas como o Rui Pinto e a Ana Gomes nos fazem falta.

Em Maio de 2017, foi publicado em Portugal, pela editora Planeta, o livro “A Orgia do Poder – a história nunca contada de Jorge Mendes, o agente português que se tornou o patrão do futebol mundial”. O seu autor, Pippo Russo, é um siciliano nascido em Agrigento, professor de sociologia na Universidade de Florença. As duas cidades são berços históricos, embora não únicos, de dois sistemas de dominação social bem conhecidos e de longuíssima duração: a máfia e o maquiavelismo.

Um ensurdecedor silêncio, como gostam de dizer os comentadores encartados, rodeou a saída e a vida do livro, de quase 500 páginas, e uma cerca sanitária parece escondê-lo até hoje, sobretudo entre as hostes sempre afogueadas e espectaculosas das gentes do futebol.

O livro não apresenta apenas um retrato detalhado e fundamentado do referido agente português que se tornou o patrão do futebol mundial. Oferece-nos, sobretudo, um amplo panorama igualmente detalhado e fundamentado do que é, ou do que tem sido, ou, melhor ainda, daquilo em que se tornou o futebol nacional nos últimos vinte anos, por detrás do som e da fúria que diariamente nos debitam as televisões, os jornais desportivos e as redes ditas sociais. Ao lê-lo, e afeito, por deformação profissional, às sínteses abertas, de razão e emoção, que o cinema é suposto realizar, a ideia com que fiquei do território ocupado pelo futebol nacional é simples mas muito expressiva: trata-se de uma zona franca, constituída por três regiões delimitadas, distintas entre si, mas unidas por um sentir comum, feito de paixão e intolerância, irracionalidade e frustração, a que vulgarmente se chama ardor clubista.

Na primeira zona, aloja-se o bom povo, gente de todas as idades, de todas as profissões e de todos os quadrantes socioeconómicos, que saltam e cantam, vociferam e digladiam, como o faziam há dois mil anos os seus antepassados romanos nas arquibancadas dos festivos coliseus. Na segunda zona, estacionam as coortes hooliganizadas de guerreiros ferozes, as guardas pretorianas dos pretórios actuais que, a fazer fé na comunicação social, na polícia e nos tribunais, se alimentam de ódio e violência, de tráficos vários e malvadas razias, como sempre o fizeram os legionários de todas as épocas. Finalmente, na terceira zona, recatada e reservada, saltitam e bebericam as finérrimas e muito mediáticas Very Important Persons: intelectuais e iletrados, polícias e ladrões, magistrados e políticos de todos os quadrantes, negociantes de todos os negócios, académicos e desempregados profissionais, banqueiros e caloteiros contumazes, jornalistas e seguranças, comentadores e comentados, influenciadores e influenciados, numa promiscuidade bruta e obscena que lembra o baile dos vampiros do meu colega Roman Polanski.

A crer nos escândalos e nos processos publicamente noticiados ao longo dos últimos quinze ou vinte anos, é nessa zona reservada e recatada, onde a impunidade até agora reinante tem constituído um adubo fértil e uma garantia segura para todos, que, entre espumantes vaporosos e canapés crocantes, se traficam favores e influências, pessoas e dinheiros, votos e mordomias.

Quando terminei de ler o livro de Pippo Russo, pensei: fogo, isto é muito pior do que eu imaginava, e mais dia, menos dia infecta-nos a todos!

Há dias, no PÚBLICO, Ai Weiwei, comparando a estratégia actual da China à covid-19, afirmava: “Vocês já estão profundamente infectados.” Quanto a mim, não sei o que será pior no futuro que a todos nos espera: se a covid-19, se o próximo ciclo imperial na terra, se o ajoelhar indigno de quem não pode em circunstância alguma fazê-lo ante os vampiros polanskianos.

No dia 14 de Novembro de 1985, Miguel Torga escreveu no seu diário: “Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança.”

Digam deles o que disserem, tenham eles os defeitos que tiverem, é também ou principalmente por isso que pessoas como o Rui Pinto e a Ana Gomes nos fazem falta.

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