Amanhã é o dia do estado da União

Para a Europa, os tempos são muito difíceis e a agenda é demasiado complexa. Mas que seria – e o que será – de nós, europeus, sem ela, sem a União?

1. Amanhã, no plenário do Parlamento Europeu, terá lugar o debate anual sobre o Estado da União – em cada ano, um dos momentos mais altos da vida política europeia, em que se faz um balanço da situação actual e se apresenta o quadro de soluções para lhe fazer face no curto e no médio prazo.

2. Todo o debate político anda em torno da pandemia e do seu enorme impacto em todas as dimensões das nossas vidas. A pandemia não tem apenas uma dimensão global no plano geográfico, tem uma dimensão total ou totalizante no plano existencial e social. Quase todos os aspectos da nossa existência, onde quer que nos encontremos, estão marcados – quando não dominados – pela pandemia. A “pandemia” é, neste sentido, uma “omnidemia”, que domina tudo, consome tudo, toca em tudo.

3. O ponto primeiro terá de ser o balanço da situação sanitária e a perspectiva da sua evolução. O início de Setembro está a mostrar-se muito complicado, por parecer “antecipar” a temida segunda vaga, que poderá ser especialmente dura. Exige-se ainda mais empenho no apoio à descoberta de vacinas ou de terapias, um planeamento rigoroso da sua produção e da sua futura administração. Impõe-se a coordenação dos serviços de saúde nacionais, para evitar as respostas egoístas da Primavera, e a harmonização dos critérios de eventuais “confinamentos” parciais e locais. Não há solução imediata que não passe por uma autêntica coordenação europeia. Já no futuro próximo, será fundamental avançar para a criação de uma “organização europeia de saúde”, vocacionada para a saúde pública.

4. O segundo ponto, com honras de quase primeiro, tem de ser o do relançamento e recuperação da economia europeia e, à frente de tudo, a protecção e criação de emprego. O plano já aprovado, pioneiro e sem precedentes, não pode ficar no papel. É crucial avançar para as 27 ratificações nacionais e regulamentar a sua execução. Esta regulação terá de ser muito exigente no bom uso dos fundos disponíveis; ninguém perdoará o desperdício ou o dispêndio em causas incógnitas. É ainda essencial melhorar o Quadro Financeiro Plurianual para os próximos sete anos, que não é visionário nem ambicioso. Olhando, aliás, para os dois pacotes em conjunto, fica a sensação de que as políticas europeias, que realmente podem potenciar a coesão, ficaram para trás e que esta alavanca financeira se destina apenas a alimentar 27 desgarrados orçamentos nacionais.

5. Saúde e economia postulam uma terceira prioridade: a gestão europeia do espaço Schengen. A situação nas fronteiras internas é caótica: cada um por si e todos com receio de todos. É crucial uma gestão coordenada da mobilidade; devem ser as entidades europeias a definir os critérios que levam uma região – a unidade territorial deve ser a região e não o Estado-membro – a ser qualificada como vermelha, amarela ou verde. Como devem também estabelecer um leque uniforme de restrições para cada uma dessas situações. Esta gestão integrada pode até implicar limitações graves, mas inseridas numa linha europeia comum. Só ela permite salvar o espaço de cidadania e o mercado interno do dilúvio das respostas nacionais.

6. A reconstrução da economia europeia em nada bole, muito pelo contrário, com as grandes prioridades que já antes haviam sido assumidas: ambiente e digitalização. A necessidade de reconversão económica consubstancia até uma oportunidade para reforçar a aposta nas metas ambientais e no combate às alterações climáticas. E o mesmo se aplica à digitalização, que é, sem dúvida, uma das grandes vencedoras da pandemia. Em particular, no domínio da educação, é necessário infra-estruturar todo o território da União, com vista em especial a atenuar e a apagar desigualdades gritantes que o ensino à distância gerou e exponenciou.

7. O novo pacto para as migrações traçará também um eixo importantíssimo para o futuro da União. A tragédia de Moria, ocorrida na semana que passou, relembrou, em plena pandemia, um dos desafios essenciais da Europa. Como lidar com as ondas de migrantes vindos da África e da Ásia, que não vão seguramente abrandar? Como enquadrá-las em tempo de gravíssima crise económica, pautada por um enorme aumento do desemprego e pela exaustão dos sistemas de segurança social? Até que ponto será possível resolver os conflitos que nesta matéria dividem os Estados-membros? Que lugar fica para os direitos humanos?

8. A pandemia, já muitos o disseram, tem sido também um catalisador e acelerador da “nova ordem” internacional. A União que, no ano passado, se queria “geopolítica”, agora vê essa dimensão geopolítica graduada numa conditio sine qua non da sua sobrevivência. Os grandes vizinhos euroasiáticos – Rússia e Turquia – espreitam com ameaças. A Rússia na Bielorrússia, depois da Geórgia e da Ucrânia. A Turquia, mexendo directamente com as fronteiras europeias da Grécia e de Chipre e com os equilíbrios do Mediterrâneo Oriental. O crescendo do protagonismo político, económico e militar da China e as incógnitas sobre o futuro da política norte-americana mudam por completo o tabuleiro de xadrez em que tem de se mover a Europa.

9. Como muda, também radicalmente, o desenlace do “Brexit". Os recentes desenvolvimentos fazem soar todos os alarmes. A insensibilidade para a paz na Irlanda do Norte, o fechamento cego à Europa, a retórica primária e populista, a quebra de acordos internacionais – tudo está nos antípodas da melhor tradição britânica. E põe em risco, mais do que qualquer outra coisa, a própria integridade do Reino Unido.

10. E para o médio prazo, sobra ainda a Conferência sobre o Futuro da Europa, que deve centrar-se na defesa e promoção da democracia e do Estado de direito ao nível europeu, mas também no terreno – hoje problemático – dos Estados-membros. E tratar duradouramente da governabilidade, da eficácia e da legitimidade das instâncias europeias.

11. Para a Europa, os tempos são muito difíceis e a agenda é demasiado complexa. Mas que seria – e o que será – de nós, europeus, sem ela, sem a União?

SIM e NÃO

SIM. Ana Gomes. Com a sua candidatura, num momento pessoal difícil, presta um enorme serviço à democracia. Mais uma vez, revela coragem, independência e apego aos valores republicanos. Não a apoio, mas agradeço-lhe.

NÃO. António Costa. Mesmo sem mais, a ingerência de um primeiro-ministro na pugna eleitoral de um clube de futebol é inaceitável. Com os actuais contornos judiciais é intolerável. Reina o sentimento de impunidade.

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