Os contos do bairro de Rusty Condieff mantêm-se actuais

Tales from the Hood, de 1995, é um dos filmes da retrospectiva Pesadelo Americano: O Racismo e o Cinema de Terror, parte do festival lisboeta MOTELX. Passa este domingo, às 20h45, no Cinema São Jorge.

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Rusty Cundieff numa cena de Tales from the Hood DR

Tales from the Hood, que não teve direito a estreia comercial em Portugal, é uma antologia de terror com quatro histórias sobre agentes da polícia corruptos, racistas e violentos, violência doméstica, políticos racistas que não lidam com o passado da escravatura e homicídios de gangues. É tudo orientado por um misterioso agente funerário interpretado por Clarence Williams II, que vai contando as histórias de pessoas mortas a três membros de um gangue.

O filme foi lançado em 1995, mas, tirando talvez o colete que Rusty Cundieff, o realizador e co-argumentista que também é actor no filme usa numa cena e não envelheceu assim tão bem, o filme mantém-se infelizmente relevante. “Não devia ter usado o colete”, diz Cundieff, a brincar, ao PÚBLICO a partir de Los Angeles numa conversa via Skype. Admite que é “chocante reflectir e pensar como todas estas histórias voltaram ainda pior do que eram quando as fizemos”.

O mote para a conversa é a exibição do filme no festival de cinema de terror MOTELX. Passa este domingo, às 20h45, na Sala 3 do Cinema São Jorge, em Lisboa. O festival acaba na segunda-feira. Faz parte da retrospectiva Pesadelo Americano: O Racismo e o Cinema de Terror. Cundieff foi cómico de stand-up e actor de telenovelas antes de se tornar realizador. Tinha participado, como actor, em filmes de duas pedras basilares do cinema independente negro norte-americano, Hollywood Shuffle, de Robert Townsend, e School Daze, de Spike Lee. Inspirado também pelo trabalho de John Sayles e Lawrence Kasdan, estreou-se na realização de longas-metragens em 1994 com uma comédia, o mockumentary Fear of a Black Hat, sobre uma banda de rap estilo NWA que satiriza algumas das maiores modas do género musical que atravessaram o início dos anos 1990. Logo a seguir, com produção executiva de Lee – que era gozado em Fear of a Black Hat, mas que adorou o filme – e um orçamento bastante maior, seguiu-se Tales from the Hood, um universo a que o realizador tem voltado ao longo dos anos: houve uma sequela em 2018, e este ano está quase a estrear-se, nos Estados Unidos, o terceiro filme da saga.

A comédia tem sido um dos grandes focos do seu trabalho, já que foi realizador de programas de televisão de cómicos como Wanda Sykes, Bernie Mac ou Dave Chappelle – é dele a realização de uma parte muito significativa do seminal Chappelle's Show. “São gigantes da comédia, teria de ser mesmo o pior para falhar com eles”, comenta Rusty.

“Para mim, tanto o terror quanto a comédia são géneros que permitem lidar com eventos reais. Sou bastante politicamente orientado e socialmente motivado, e assim posso lidar com problemas de uma maneira que pode dar-lhes um foco, mas não tem necessariamente de ser demasiado óbvio, como teria de ser num drama”, conta o realizador. “Tanto no terror como na comédia, quando estás a ver com público, sabes logo se está a funcionar ou não. Em comédia, se as pessoas não rirem, falhaste o alvo. No terror, se não estão comprometidas e não consegues alguns sustos e excitá-las, também falhaste. E a ideia de alívio da tensão, ambos têm isso. Montas as coisas para surpreender alguém com uma piada ou com medo, algo inesperado”, resume.

Todos os projectos originais em que se envolve, explica Cundieff, “têm algo de político ou social”. Na sátira, isso, por vezes, poderá ter interpretações erradas. É famosa a história de Dave Chappelle ter ouvido, durante a gravação de um sketch sobre estereótipos raciais em 2004, um homem branco a rir alto de uma forma que o deixou desconfortável. Que se estava a rir não do ridículo dos estereótipos, mas de toda a raça negra. Terá sido esse episódio que levou o cómico, num pico de fama, a abandonar Chappelle's Show a meio da gravação da terceira temporada, que nunca chegou a ser concluída como idealizada. Cundieff era o realizador desse sketch.

“Terias de entrar na mente do Dave para saber o que é que ele estava a sentir. Havia definitivamente um riso, mas não sei se senti que era de alguma maneira diferente do riso normal. Tal como no Fear of a Black Hat, o Dave trabalhava na área da sátira, e é algo complicado. Mesmo o Fear, conheci pessoas que me diziam que adoravam o filme, e ficava surpreendido porque me diziam que eu odiava rap tanto como elas”. “Eu não odeio rap”, desabafa o realizador. “Na sátira, se não estás sintonizado com a pessoa que está a apresentar ou a satirizar, podes olhar para aquilo como algo diferente do que é imaginado. Tinha estado com o Dave umas vezes na rua e as pessoas iam ter com ele e diziam coisas sobre sketches que te faziam pensar que não percebiam o significado deles. Provavelmente, passado algum tempo, isso começou a afectá-lo e ele estava demasiado sensível à forma como as coisas estavam a ser interpretadas incorrectamente, mesmo que muito tenha sido interpretado de forma correcta”, continua.

Como é que um criador pode, então, combater essa má interpretação? “Tens de pôr isso de lado. Já não faço sátira directa há muito tempo, mas desde que eu saiba o que quis dizer, se alguém vem falar comigo e eu posso explicar o que queria dizer, estou OK com isso. As pessoas trazem sempre as suas experiências, nem toda a gente vai interpretar de forma igual”, conclui.

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