Toots Hibbert: morreu aos 77 anos o pai do reggae

Mítica figura dos Toots & The Maytals, foi o primeiro músico a usar o termo “reggae” numa música e um dos grandes responsáveis pela revolução cultural que mudou a cidade de Kingston nas décadas de 1960 e 1970. O jornal jamaicano The Gleaner avança que o histórico artista estava internado no hospital com sintomas de covid-19.

Foto
Toots Hibbert FRANS SCHELLEKENS/REDFERNS

Foi o primeiro a utilizar a palavra “reggae” numa música (Do the Reggay, 1968) e, apropriadamente, um dos primeiríssimos ícones do género que apadrinhou. Toots Hibbert, lendário líder dos jamaicanos Toots & The Maytals, que nos anos 60 e 70 ajudaram a revolucionar a identidade artística da cidade de Kingston, morreu esta sexta-feira aos 77 anos, confirmou a família. A causa de morte ainda não foi oficialmente divulgada, mas o jornal jamaicano The Gleaner avança que o artista estava internado no hospital com sintomas de covid-19.

Nascido em Dezembro de 1942 na vila de May Pen, a pouco menos de 50 quilómetros de Kingston, Frederick Nathaniel “Toots” Hibbert cresceu com sete irmãos mais velhos e um ouvido para a música. Os pais eram pastores adventistas e rapidamente o coro gospel da igreja chamou a atenção. Mas foi acima de tudo na escola que o pequeno Toots começou a desenhar a ambição de perseguir uma carreira performativa. “Nós tínhamos de cantar antes das aulas e a professora dizia-me: ‘Yeah, tu tens a melhor voz.’ Ela encorajou-me imenso”, partilharia com a BBC Radio 6 Music, em 2018.

Hibbert tinha oito anos quando a mãe morreu e 11 quando faleceu o pai. Ainda adolescente, o jovem fez a mochila e juntou-se ao irmão John – que lhe daria a alcunha de “Little Toots” –, encontrando emprego numa barbearia local. Foi nessa barbearia, onde passava os dias a cantar, que conheceu os vocalistas Jerry Matthius e Raleigh Gordon, com quem formaria os Maytals.

Em 1962, os caminhos do grupo cruzaram-se com os de Clement “Coxsone” Dodd, mítico produtor que, ao mesmo tempo que figuras incontornáveis como Lee “Scratch” Perry ou Osbourne Ruddock, vulgo King Tubby, muito faria pelo desenvolvimento da música ska e do rocksteady, esse estilo pré-reggae. Impressionado com Toots, Dodd trouxe os Maytals para a editora Studio One, que havia fundado em 1954, acelerando o crescimento da banda. Foi com o selo deste estúdio que, em 1964, o trio lançou o seu álbum de estreia, Never Grow Old. The Sensational Maytals (de onde saiu a magnética Bam Bam) seria editado em 1965 e o significativo Sweet and Dandy chegaria às lojas de discos antes do fim da década. Este último projecto, para além da clássica faixa-título, incluía uma versão de 54-46 Was My Number, canção que até hoje é uma das mais emblemáticas da carreira de Toots e, por extensão, do reggae.

No histórico tema, o vocalista lembra os meses que, entre 1966 e 1967, passou na cadeia. Foi supostamente “caço” com marijuana no bolso, mas insiste que a acusação é falsa, tentando escapar à dura punição das autoridades. De nada lhe servem as explicações, no entanto: sem demoras, o guarda prisional saca do cassetete e castiga o músico pelo delito. “Give it to me one time! Uh! Give it to me two times! Uh-uh!”, atira no refrão. Cada grito é o impiedoso bastão a agredir as costas de Toots. Gritos de luta e revolta contra a brutalidade policial e as falhas de um sistema que a permite.

A autobiográfica composição – 54-46 era literalmente o seu número de recluso – transformar-se-ia num dos primeiros hinos internacionais do reggae, termo que chegou ao léxico da comunidade criativa de Kingston muito por culpa do próprio Hibbert, que em 1968 assinou a popular Do the Reggay. “O som estava lá, e ninguém sabia o que lhe chamar”, recordaria à BBC. “E na Jamaica tínhamos um calão: se não estivéssemos lá muito bem arranjados, se estivéssemos meio esfarrapados, chamávamos-lhe ‘streggae’. Foi daí que tirei a inspiração.”

Funky Kingston, talvez o mais importante álbum dos Maytals, chegaria em 1972 ao Reino Unido e três anos mais tarde aos Estados Unidos, com faixas diferentes. O primeiro a ser distribuído pela Island Records, do antigo produtor Chris Blackwell, o disco reúne muitas das mais celebradas canções no repertório do trio, como Time Tough, Pomp & Pride, Louie, Louie (cover de Richard Berry), Country Road (cover de John Denver) e Pressure Drop (que mais tarde seria recuperada por nomes como The Specials, The Clash, Keith Richards ou Izzy Stradlin, dos Guns n’ Roses). O tema que empresta o título ao álbum é o reggae na sua essência, ao mesmo tempo sujo e luminoso, alegre e intervencionista, cativante e político.

1972 foi também o ano em que Toots apareceu no filme The Harder they Come, do realizador jamaicano Perry Henzell. A longa-metragem, hoje um clássico de culto tão ou mais conhecido pela banda sonora como pelo enredo, tem no papel principal um jovem Jimmy Cliff, na altura com apenas 24 anos. O cantor interpreta Ivan, um cidadão pobre do campo que tenta a sua sorte em Kingston e que, sem meios para sobreviver, dá por si dentro de uma traiçoeira rede de narcotráfico antes de gravar uma música de sucesso e de ser perseguido pela polícia local. Um dia, no estúdio, passa pelos Maytals, que estão a tocar Pressure Drop. Com o tempo, The Harder they Come expandiria o raio de acção do reggae, colocando-o no radar de um público até então inconsciente da revolução cultural que estava a acontecer na Jamaica.

Em 1980, os Maytals asseguraram um lugar no Guinness depois de editarem em vinil um álbum ao vivo no antigo recinto londrino Hammersmith Palais menos de 24 horas depois da realização do concerto. Foi o próprio Chris Blackwell quem, ao volante do seu Mini Cooper, pessoalmente entregou às lojas de discos o projecto. Um ano depois, Matthius e Gordon retiraram-se do mundo da música.

A década seria relativamente calma para Hibbert, que nos anos 90 reformulou os Maytals e regressou à estrada com novo fôlego. Mais tarde, a digressão comemorativa dos 50 anos do grupo levantou um inesperado contratempo quando, em 2013, Toots foi atingido em palco por uma garrafa de licor (o incidente valeu seis meses de prisão ao fã que a atirou). A longo prazo, o vocalista queixou-se de “extrema ansiedade, perdas de memória, dores de cabeça, tonturas e, acima de tudo, medo de multidões e de actuar”. “Precisei de três anos para conseguir voltar a fazer as pessoas felizes”, reflectiu depois de se reencontrar com os palcos.

Toots foi hospitalizado pouco depois do lançamento de Got To Be Tough, disco editado pelos Maytals há duas semanas e produzido por Zak Starkey, filho de Ringo Starr. Citado pela Rolling Stone, Starkey impressionou-se sobretudo com a “longevidade” do artista. “O poder na voz dele ultrapassa qualquer outra pessoa que alguma vez conheci. E ele atravessou todas as gerações da música jamaicana. Ele estava na linha da frente no início e continua na linha da frente agora. Quão incrível é isso?”, salientou.

“O reggae significa uma mensagem de consolo e salvação”, explicou o artista em 2012, à conversa com a revista Interview. “A juventude está a ir para a escola e tem de ouvir as palavras. Os pais têm de ouvir as palavras. Deus tem de ouvir as palavras. Então temos de fazer com que as palavras sejam positivas. Se cantas canções infantis, canções de embalar, isso não é nada. Rebentas amanhã e o disco morre ao mesmo tempo. Mas se dás palavras positivas, a música vive para sempre.”

Sugerir correcção