A liberdade de educação em defesa da pluralidade

Espanta-me que, passados 46 anos do fim do Estado Novo, ainda haja quem defenda que a Escola deve educar as crianças para as virtudes cívicas definidas pelo Ministério da Educação. Pelos vistos só mudaram as bandeiras.

1. Uma das aprendizagens que marcaram o meu crescimento foi o ganhar consciência da diversidade do mundo. Na escola, na faculdade e no trabalho, fui crescendo na compreensão de que nem todos partilham da minha visão do mundo e da sociedade. E penso que um dos maiores passos de maturidade é quando aprendemos não apenas a respeitar essa diversidade, mas também a estimá-la. Perceber que os outros podem desejar o mesmo bem que eu e, contudo, defender outro caminho para o alcançar.

2. Durante vários anos fui responsável por grupos de jovens. Um dos maiores desafios na relação educativa com os jovens é perceber que não existem “jovens” enquanto grupo homogéneo de seres humanos, mas que cada um é único, com as suas experiências, as suas circunstâncias pessoais, o seu ritmo de aprendizagem e desenvolvimento, as suas preferências e gostos e, sobretudo, com as suas necessidades próprias. Por isso, a relação educativa, sobretudo nas questões mais pessoais e íntimas, não pode ser uniforme. Depende sempre da pessoa concreta que se tem diante.

3. Uma das coisas que aprendi como pai é que a educação não depende apenas das características concretas das crianças, mas também das nossas. Daquilo que nós, pais, somos capazes de fazer e de oferecer aos nossos filhos. Tenho a sorte de ter vários amigos e familiares com filhos da mesma idade dos meus. E verifico como todos nós educamos os nossos filhos de maneira diferente. E que muitas vezes os nossos métodos educativos, mais do que de qualquer teoria, dependem das nossas características, do nosso feitio, do nosso tempo e disponibilidade. E tenho percebido que os métodos que eu uso para educar os meus filhos, provavelmente não funcionariam com os outros, e vice-versa. Não se trata de ser melhor ou pior, trata-se de como cada um é enquanto pai ou mãe.

4. Não me incomoda nada que o Estado crie na Escola uma disciplina de educação cívica. O Estado tem o dever de auxiliar os pais na educação dos seus filhos, e por isso é razoável que auxilie também os pais na sua tarefa de educar os filhos para a vida em sociedade. Contudo, tal disciplina transmitirá sempre a visão de cidadania dos autores do seu programa e dos professores que a leccionam. O que não tem mal nenhum, e de outra forma seria impossível.

5. O problema é quando essa disciplina se torna obrigatória. Porque aí já não se trata de auxiliar os pais que assim o desejam, trata-se de impor a todas as crianças uma visão determinada sobre a cidadania. Como se essa visão fosse a única possível e aceitável. A imposição de uma visão oficial da cidadania é a imagem de marca dos regimes autoritários. Por isso, a nossa Constituição proclama no seu artigo no artigo 43.º: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.”

6. Não discuto aqui os méritos do programa da disciplina de Educação para a Cidadania. Seguramente terá vários. Discuto apenas a pretensão de uniformizar o pensamento, as crianças e os métodos educativos. Defendo a liberdade dos pais em escolher que visão de cidadania querem transmitir aos seus filhos, quando o querem fazer e como o quiserem fazer. Se preferem que isso seja feito na Escola, acho muito bem. Se preferem serem eles a fazer, acho muito bem. Recuso é uma visão monolítica, onde só há uma visão de cidadania, um só método educativo, como se as crianças e os pais fossem todas iguais.

7. O que mais me tem incomodado no debate sobre as crianças de Famalicão que não frequentaram as aulas de Educação para a Cidadania é ver a quantidade de pessoas que convive mal com a diversidade de opiniões. A quantidade de pessoas que considera normal a imposição às crianças da sua visão da Cidadania, como se não fosse possível outra. E espanta-me que, passados 46 anos do fim do Estado Novo, ainda haja quem defenda que a Escola deve educar as crianças para as virtudes cívicas definidas pelo Ministério da Educação. Pelos vistos só mudaram as bandeiras.

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