Futuro em debate: campeões mundiais, para quê?

O desporto competitivo é um ensaio geral para a vida. Estou a falar da solidão de dependermos de nós próprios para algo que realmente queremos conquistar. Essa vontade empurra-nos a aprender muitas coisas.

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Diogo Ventura

Termos campeões mundiais é um dos sinais mais vibrantes de que a sociedade está a criar pessoas preparadas para o mundo. Reparem bem: um campeão mundial vem do sangue nos olhos. De uma vontade que não se esgota, que se funde com um talento fora de série e se expande pela força da disciplina inabalável.

Para a história, o campeão mundial está na singularidade e no génio. Para mim, não. Para mim, o campeão mundial (ou, mais importante, a produção consistente de campeões mundiais) está no colectivo.

Mais especificamente, nos magotes de miúdos e miúdas que proporcionam as condições para que todas as gerações de atletas floresçam na forma de um ou dois indivíduos fora de série. Quando eu tinha 15 anos, ao meu lado, nos campeonatos nacionais de surf, existiam uns 40 concorrentes a competir nos sub-16. Desses, uns dez passaram por campeonatos de juniores lá fora. Dois ou três vivem de ser atletas. Um foi campeão mundial sub-20.

Foi uma geração bastante atípica mas, mesmo assim, é possível ver quão poucos conseguiram “chegar lá”. Os que conseguiram vivem com o medo e a incerteza de uma lesão ou de uma crise que leve as marcas que os patrocinam. Entre os dez melhores surfistas nacionais seniores, hoje, três podem dizer-se profissionais. Os restantes dependem de pais que aguentam carreiras, de dar aulas de surf ou de trabalhar em outras áreas, distantes do que realmente sabem ou gostam de fazer.

O que se passa no surf é interessante para entender a situação do desporto em geral: é um desporto da moda, na água não cabe toda a gente e o próprio leitor já terá experimentado uma aulinha, não já? No entanto, quase não há surfistas profissionais. Tirando o cenário do futebol, que ainda sustenta umas boas centenas de profissionais, os restantes desportistas viverão situações similares às dos surfistas.

“Mas porque é que isto me interessa a mim?”

Tenho 25 anos e, por isso, estou rodeado de jovens que, como eu, estão sozinhos e dependentes apenas de si próprios pela primeira vez na vida. E estão em pânico.

Aos 19 anos também me senti assim: fui apresentar um projecto que me apaixonava a um conjunto de pessoas mais velhas, com sorrisos ameaçadores, que ostentam títulos como “director de marketing” e óculos hipsters maquiavélicos, capazes de não aprovar sonhos com um simples ignorar do nosso email de follow up. Comecei a tremer. Mas o meu pai, que tinha vindo comigo a essa primeira reunião, lembrou-me de algo: “Filho, tu surfas ondas de três metros, vais para campeonatos à volta do mundo sozinho e já recuperaste de lesões em metade do tempo previsto para poderes surfar. Tu já fizeste isto.”

E era verdade. Nunca tinha feito exactamente aquilo. Mas já tinha feito o que aquilo implicava: aprender a ir por aí, sozinho.

O desporto competitivo é um ensaio geral para a vida. Estou a falar da solidão de dependermos de nós próprios para algo que realmente queremos conquistar. Essa vontade empurra-nos a aprender muitas coisas. Mas eu gosto de duas.

A vida de atleta responsabiliza-nos pelas nossas escolhas, cujas consequências se reflectem no nosso desempenho. A adolescência tende a esconder-nos as consequências das coisas. Mas ter uma paixão associada ao desporto significa que sentimos com mais força quando algo que fizemos teve resultados positivos e, talvez de forma mais importante, quando algo que fizemos resultou numa derrota.

Somos bombardeados com novos desafios. Novos adversários, novos parceiros, improvisos tácticos de última hora, lesões, novos países. O “novo” assusta. E se nos pudéssemos treinar para que o novo fosse o mais normal na vida? Crescer enquanto atleta implica justamente isso.

É por isto que me interessam os campeões mundiais. Eles são o reflexo de um maralhal de miúdos e miúdas que se dedicaram ao desporto e que, por isso, estão mais bem preparados para a vida adulta.

Precisamos de mais campeões mundiais, pelo que eles significam. Mas temos de criar condições para que os jovens atletas não tomem a decisão fatídica de desistir para conseguir sobreviver. Com ela, uma geração se perde, o campeão mundial que sairia daí já não sai, e muitos não têm a oportunidade de enfrentar os tais desafios que os fariam melhores pessoas quando os desafios saíssem das pistas, dos campos e do mar para o mundo, já fora de jogos.

Muitos dirão que é um problema do mercado. Cada desporto só consegue comportar uns dois ou três profissionais de cada vez e essa é a realidade. Eu discordo. Depois de ouvir um sorridente “não” naquela reunião inicial, continuei a tentar. Afinal de contas, estava habituado a perder. Da mesma forma que voltei de outras derrotas com manobras novas, o meu PowerPoint ficou mais curto e mais vendedor, a minha voz tremia menos e a minha marca passou a valer mais. Aprendi uma coisa muito interessante que me permite ser, orgulhosamente, um “surfista profissional”: para se surfar bem durante mais tempo, tão importante como aprender a “mandar tubos” é aprender a mandar emails. A ter uma estratégia de vendas e de comunicação. A ser uma marca, um produto.

Eu tive muita sorte. Tenho um pai marketeer, que me ensinou o que eu não aprendi noutros sítios. Que encestar uma bola e carregar no send de uma newsletter são coisas bem diferentes, mas são ambas competências necessárias em fazer do desporto um caminho.

Durante os estágios das selecções nacionais, treinamos, falamos de táctica e técnica e temos aulas de psicologia desportiva. Os mesmos espaços podem ser ocupados com rudimentos do marketing digital, da gestão e do branding. E os briefings dos treinadores podem ser intercalados com ensinamentos de agentes ou gestores de marcas.

Para formarmos mais campeões mundiais, precisamos de dar aos jovens as ferramentas necessárias, no século XXI, para que façam do desporto a sua vida. Não é fácil, não é óbvio, mas pode fazer a diferença.

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