E a Justiça? O acesso ao direito e aos tribunais

Tudo se passa, na verdade, como se o abalo telúrico que estamos a viver não se repercutisse no mundo dos tribunais e no acesso à Justiça.

Todo o mundo da justiça pode ser apreciado sob duas perspectivas. Ou se aborda pelo lado dos poderes, melhor dizendo, do Estado que julga e que administra, ou pelo ângulo de visão que é o próprio dos cidadãos.

Do lado dos poderes, a democracia e o Estado de direito exigem uma organização judiciária tão transparente quanto possível, normas processuais sem alçapões, estatutos dos profissionais exigentes e fiscalizáveis e uma tributação adequada à natureza dos litígios e ao património de cada um.

Mas o que mais importa nesse duplo contexto é apreciar o direito de acesso ao direito e aos tribunais, agora sob o ângulo de actuação dos cidadãos. E é esse um dos temas centrais da nossa Constituição, no que à Justiça diz respeito.

Pelo seu relevo, atrevo-me a transcrever o Art. 20.º da nossa Lei Fundamental. Reza assim:

“Artigo 20.º
Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”

Radiografando a norma, cedo concluímos que se trata de uma garantia estruturante da própria Democracia e um pilar incontornável do Estado de direito.

Repare-se no que a nossa Primeira Lei nos garante o acesso ao direito  ou seja, de forma aparentemente pleonástica, o direito de acesso ao direito, dum lado – e o direito de acesso aos tribunais, o que significa que os ingredientes que acima identifiquei (organização judiciária tão transparente quanto possível, normas processuais sem alçapões, estatutos dos profissionais exigentes e fiscalizáveis e uma tributação adequada) não possam servir de obstáculo para aceder a um tribunal “para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos”.

Mas como atingir esse acesso ao direito e como nos poderemos socorrer de um tribunal? É a própria norma constitucional que nos oferece as três dimensões: alcançar uma “informação jurídica”, ter à sua mão o acesso a uma “consulta jurídica” e, finalmente, a “fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade”, mesmo perante os tribunais. Ora, se é verdade que a Constituição garante a todos nós essas três dimensões para o acesso ao direito e à justiça, também é verdade que nos diz que qualquer delas “não pode ser denegada por insuficiência dos meios económicos”.

Ora, chegados aqui, urge investigar se os poderes públicos (órgãos de soberania e administração pública) nos facultam com adequada suficiência a informação jurídica de que cada cidadão carece na sua vida activa. A resposta afigura-se negativa, embora alguns serviços administrativos prestem informaticamente essa função, mas, sem ser negativista, é ostensivo que a comunicação entre os serviços (mesmo os das autarquias) e os cidadãos se pauta por sérios obstáculos, muitas das vezes nos próprios guichets da administração pública, directa e indirecta.

Duas notas merece esta óbvia carência (mesmo que parcelar): a primeira é para lembrar o velho princípio segundo o qual a “ignorância da lei não aproveita a ninguém”, princípio que, como se conclui, se acha em rota de colisão com esta garantia constitucional. A segunda nota serve para realçar que as camadas mais débeis do nosso Povo se acham quase absolutamente eliminadas do acesso a uma informação jurídica adequada.

Tudo isto, apesar de a lei que regula o Acesso ao Direito (Lei 34/2004, já actualizada) prever que o “dever de informação recai sobre o Estado e, dentro dele, sobre o Ministério da Justiça, em colaboração com todas as entidades interessadas…”.

Ora, esses mesmos obstáculos (o económico e a iliteracia) estendem-se à consulta jurídica. Aqui, com mais nitidez, o acesso a advogado torna-se bem mais distante.

Sabendo-se que só os advogados e, em certa medida, os solicitadores, estão legalmente autorizados a prestar consulta jurídica, não me parece que as respectivas Ordens se tenham organizado para oferecer aos cidadãos (aqui com carência económica) esse imprescindível serviço. E, note-se, é na “Consulta Jurídica” que se resolvem muitos conflitos, por via da acção de uma advocacia diligente que permite que se evite uma parcela importante da conflitualidade em tribunal.

Ora, para quem não tem suficiência económica para consultar um advogado, ou para intentar uma acção em tribunal, ou seja, como diz a lei, “não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo”, a lei prevê um bem articulado mecanismo entre o cidadão, a Ordem dos Advogados, os tribunais e o Ministério da Justiça que, como adiante referirei, urge simplificar.

Na verdade, achamo-nos perante duas realidades.

A primeira tem que ver com a crise laboral e económica que resulta imediatamente da pandemia. Se é mais que adquirido que a nossa Justiça é cara, e se mesmo sem a conjuntura actual estava interiorizado que o acesso a um tribunal se mostrava economicamente pesado, agora, perante as consequências profundas da pandemia, tornou-se ainda mais gravoso aceder a um tribunal.

Como se verifica, uma vez mais, o mundo da justiça vive separado, como uma ilha, face à espiral de crises, de vária natureza, que a todos nos atinge. Tudo se passa, na verdade, como se o abalo telúrico que estamos a viver nada se repercutisse no mundo dos tribunais e no acesso à Justiça.

A segunda realidade a ter em consideração exige de todos, mas especialmente do poder político, a ponderação sobre os critérios em vigor para declarar um cidadão com insuficiência económica. Desde logo, no mundo laboral, não se compreende como não é decretada a absoluta e total gratuitidade dos litígios nos tribunais de trabalho.

A insensibilidade política perante esta crise, perante o desemprego e perante a diminuição de rendimentos impõe o reexame dos critérios de tributação judiciária, em geral, e, muito especificamente, no que diz respeito aos critérios adoptados para o “cálculo do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica”.

Se é sabido que tais critérios se mostram (hoje) muito rigorosos e só as pessoas com pouquíssimos rendimentos acedem ao apoio judiciário, afigura-se necessário agir em dois sentidos, até para respeitar as sequelas da presente crise: dum lado, simplificar os critérios de atribuição dos benefícios da protecção jurídica, e, doutro lado, isentar absolutamente de qualquer tributação todo o cidadão que tenha visto extinguir a sua actividade laboral ou empresarial.

Limito-me, para exemplificar a necessidade da simplificação, a transcrever a fórmula legal para apurar “o valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar”. É a seguinte:

E a fórmula para apurar “o valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica” é a seguinte:

Como se vê é simples… Poderá sê-lo para os serviços. Nunca o será para o cidadão, mesmo que letrado. E a sua revisão, a sua simplificação é pouco complexa.

Bastará, para simplificar, que o “rendimento médio do agregado familiar” seja calculado de acordo com uma regra muito simples. Bastará dividir esse rendimento pelo número de pessoas que integram o agregado familiar e consagrar quatro ou mais escalões de isenção parcial, podendo atingir a isenção total se o rendimento médio for inferior ao rendimento mínimo garantido.

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