Geração rasca?

O editorial de Vicente Jorge Silva, publicado a 6 de Maio de 1994, sobre a contestação às provas globais lançou o debate sobre toda uma geração. O primeiro director do PÚBLICO morreu nesta terça-feira, dia 8 de Setembro de 2020.

A crise da política e o vazio de ideais e valores terão sido substituídos pela escatologia e pela obscenidade? As manifestações de protesto converteram-se hoje em expressões de má-criação, estupidez e alarvidade que fazem corar de vergonha os espíritos mais tolerantes e liberais? O hooliganismo futebolístico transferiu-se dos estádios para as escolas e para a rua? A banalização da vulgaridade estimulada pela televisão e por alguns ídolos do momento — como o inenarrável Quim Barreiros — contaminou a própria linguagem da contestação? Estamos a assistir ao nascimento de uma geração rasca?

Estas são questões que urge pôr depois do espectáculo dado ontem em todo o país pelos estudantes do ensino secundário.

A pretexto de uma contestação às provas globais, os liceais transformaram os seus cortejos num desfile de palavrões, cartazes e gestos obscenos, piadas de caserna ou trocadilhos no mais decrépito estilo das velhas “repúblicas” coimbrãs. Ou seja: liquidaram o capital de simpatia que o seu protesto poderia suscitar com o abandalhamento alarve das razões que lhes assistiam. Afinal, que querem os estudantes? Pôr em causa o que lhes parece injusto ou servir-se de uma causa legítima para mostrarem que, afinal, apenas merecem o tradicional par de tabefes com que antigamente pais e professores castigavam a má-criação de filhos e estudantes? Ou será ainda que pretendem fazer com que a polícia — normalmente apontada como o mau da fita — perca justificadamente a paciência com as provocações e arruaças dos bandos juvenis?

O drama que estas manifestações vieram agora pôr a nu com toda a clareza é que a escola e a sociedade — com ou sem provas globais — estão a formar uma geração malcriada e mal-educada. E é preciso acrescentar que os meios de comunicação social têm nisto uma responsabilidade indiscutível, na forma frequentemente acrítica e benevolente com que vêm registando manifestações onde os sinais de festividade rasca eram já perfeitamente visíveis e intoleráveis. São responsabilidades que também partilhamos neste jornal, mas que deveriam ser sobretudo assumidas pelas televisões que começaram por filmar os protestos estudantis como actos quase heróicos e antifascistas.

É preciso acordarmos para este fenómeno que ameaça alastrar-se um pouco por todo o lado. É preciso que pais e educadores se dêem conta do ponto a que chegou a sua demissão, desde a indiferença familiar e afectiva à degradação física e cívica das escolas. As provas globais são apenas a ponta do icebergue de um mal-estar e de uma desorientação que pode ter consequências trágicas para o futuro das novas gerações e do próprio país.

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