Um imenso adeus, como num filme

Sem a visão de Vicente Jorge Silva de um jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português – todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena parte do que colectivamente lhe devemos.

Num filme de Capra já tão gasto de ser exibido, It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu uma Estrela), um anjo mostra a George Bailey (James Stewart) que, se ele não tivesse nascido, a vida em seu redor, tudo o que ele conhecia e prezava, seria bem diferente – para pior. No caso de Vicente Jorge Silva não precisamos de nenhum anjo para saber que, sem ele, sem a sua visão de um jornalismo com padrões de qualidade internacional, o jornalismo português – todo ele, não só o escrito – seria hoje bem mais pobre. E isso é uma pequena parte do que colectivamente lhe devemos. Porque centenas de pessoas dirão que conhecê-lo, privar com ele, trabalhar com ele, foi decisivo para as suas vidas. No meu caso, comecei a lê-lo no Comércio do Funchal, nas folhinhas cor-de-rosa que já eram um caso sério no jornalismo português, ainda a ditadura imperava. E continuei depois a lê-lo nas páginas do Expresso, onde já despontava A Revista. Por uma qualidade que manteve ao longo de anos: uma escrita excelente, cuidada, viva e entusiasmante.

Pessoalmente, conheci-o bem mais tarde, em 1981, pouco antes de ingressar nos quadros do Expresso, e isso foi decisivo: se até aí encarava o jornalismo como missão de cidadania, ou até de militância, passei a encará-lo também como objecto de paixão. Poucos conseguiam transmiti-lo como ele. As olímpicas discussões em torno dos temas a tratar semanalmente na revista (onde o acompanhei durante anos) e o empenho posto na sua execução, tentando sempre ir mais longe, eram momentos épicos onde ele funcionava com uma eficácia magnética, atraindo as atenções e motivando réplicas, mesmo quando se enfurecia ou, teatralmente, atirava papéis ao ar.

Essa lógica quase “comunitária” de jornalismo participativo (onde os jornalistas tinham voto na matéria, não eram simples executores de ordens), transferiu-se depois para o PÚBLICO, projecto inovador que veio abalar a ordem estabelecida na imprensa portuguesa, e no qual muitos tiveram a honra e o prazer de estar ao seu lado. Era mais uma, e esta decisiva, das “nossas grandes aventuras nos mares do jornalismo”, como ele certo dia sintetizou numa dedicatória. E nessas aventuras (que o PÚBLICO mantém) sempre contou e conta mais o fervor das coisas, a génese do que se tem entre mãos, não a sua ilusória aparência, que trai o essencial.

A paixão de Vicente pelo jornalismo (amor consumado em diversas épocas e títulos) estendeu-se a outras áreas. No cinema, que muito o inspirou na forma como titulava e paginava artigos, com referências explícitas à Nouvelle Vague francesa ou ao cinema italiano (Rossellini, Antonioni), não foi feliz, apesar de ter deixado num filme, Porto Santo algumas das suas obsessões, como o amor (pelas pessoas, pelos lugares, pelas coisas) e o mistério que o rodeia (e rodeia pessoas, lugares e coisas). Na música, entre a suas predilecções, encontrava-se o nome mítico da bossa nova: João Gilberto. E a política, onde se aventurou num interregno ainda menos feliz, cedo o desencantou.

A centelha que lhe brilhava no olhar, essa, manteve-a até ao final. Abria muito os olhos, muitas vezes por brincadeira (e tantas delas com caretas quase infantis), como parte da sua forma de lidar com o mundo. E nesse olhar que se nos tornou tão familiar, tão ternamente familiar, estava a alma de alguém que desinquietou tudo em seu redor em movimentos contínuos, como pólo agregador, porque o inconformismo que o roía raramente o deixava parar. E foi esse inconformismo, aliado a uma insatisfação que também nele era frequente, que o fez mudar, tantas vezes quantas julgou necessárias.

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Em 2017, quando o desafiaram a escolher uma capa por ocasião da edição número 10.000 do PÚBLICO, Vicente escolheu a de 26 de Dezembro de 1991, que ele próprio idealizou no dia de Natal desse ano e que, sobre uma enorme fotografia a preto e branco, tinha apenas duas palavras: “Obrigado, Gorbatchov”. E em editorial escreveu: “É tempo para agradecer ao homem que, antes de partir, descongelou a História. Obrigado, Gorbatchov.”

Quase 30 anos passados, quando Mikhail Gorbatchov ainda vive (tem 89 anos), podemos apropriar-nos desse título e, numa capa imaginária que a memória guardará para sempre, escrever aquilo que será para muitos um acto de merecidíssima justiça: “Obrigado, Vicente!” E, nesta hora triste, homenageá-lo num imenso e intenso adeus, como num filme.

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