Ela usa pinturas do século XVII para ilustrar o mansplaining — com piada

Homens que defendem o piropo como forma de elogio, são experts em cólicas menstruais ou dão conselhos vitais sobre código de vestuário feminino são protagonistas de Men to Avoid in Art and Life, da comediante Nicole Tersigni. O livro, que escava até à raiz do mansplaining, disseca os comportamentos que, em pleno século XXI, continuam a toldar as relações entre sexos.

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Para alguns homens, “pode ser desconfortável ver coisas que fazem ou dizem – que achavam úteis e inofensivas – a serem usadas para realçar experiências frustrantes que as mulheres têm regularmente”. O acutilante livro da comediante norte-americana Nicole Tersigni, Men to Avoid in Art and Life, pode suscitar reacções de cólera (que a autora garante ao P3 já ter recebido), mas também provocar gargalhadas bem sonantes – afinal, o humor, como a beleza, está nos olhos de quem vê.

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"Acho que não percebeste a minha piada. É engraçado porque o pombo está morto. Ele não pode... Sabes que mais? Vou contar de novo. Desta vez, presta atenção." ©Nicole Tersigni

O livro de Tersigni, recentemente editado pela Chronicle Books, contém reproduções de telas do século XVII que retratam homens em interacção com figuras femininas. As últimas “parecem quase sempre cansadas, frustradas, fartas de seja o que for que se passa naquele quadro”, explica a comediante norte-americana ao P3, em entrevista. “A intenção dos artistas podia não ser retratar as mulheres desta forma, mas o facto é que me deram a oportunidade de reinterpretar esses quadros à luz da modernidade.” Nessas reinterpretações, há homens que defendem o piropo como forma de elogio, homens que são experts em cólicas menstruais, homens que dão conselhos vitais sobre código de vestuário feminino.

O namoro entre as telas do século XVII e as tiradas misóginas nasceu no Twitter, em Maio de 2019. Após um dia cansativo a tomar conta da filha de oito anos, Nicole fazia scroll pelo seu feed e deparou-se com um utilizador a explicar a uma colega de profissão a sua própria piada – algo que a comediante assegura já lhe ter acontecido inúmeras vezes. Decidiu que esse utilizador merecia uma resposta à altura do seu mansplaining, por isso procurou no Google uma imagem baseada na pesquisa “mulher rodeada de homens” e tropeçou numa pintura de 1612, do alemão Jobst Harrich, na qual figura uma mulher com um seio descoberto rodeada por dez homens. Decidiu partilhá-la acompanhada do texto “Se eu descobrir a outra mama, talvez eles parem de me explicar a minha própria piada”. A reacção foi muito expressiva e o post tornou-se viral.

Nicole decidiu dar largas à criatividade e repetir a fórmula. “Tu não és como as outras mulheres” está inscrito sobre uma tela de Sir Peter Lely, de meados dos século XVII. “Devias sentir-te lisonjeada pelo facto de seres atraente o suficiente para ser assediada,” figura sobre outra de Barend Graat, de 1661. “O Feminismo está a ir longe demais, na minha opinião – e eu até já votei numa mulher”, figura sobre uma tela de Berthold Woltze, intitulada O Senhor Irritante. “Não vou continuar a falar contigo se continuares histérica” ou “Deves usar roupa menos reveladora se queres ser levada a sério” são outros exemplos.

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"Vejo que estás muito ocupada, mas devo dizer-te que ficarias muito mais bonita se sorrisses." ©Nicole Tersigni

Os seus tweets multiplicaram-se e tornaram-se virais, reunindo dezenas de milhares de likes e partilhas. Alguns homens aproveitaram a plataforma para explicar-lhe as suas próprias piadas de volta, como já é habitual, e outros aproveitaram para evidenciar que nem todos os homens fazem ou dizem essas coisas. Nicole sabe.

Jen Kirkman, a comediante que escreveu o prefácio do livro, faz questão de referir que “se acham que a Nicole não sabe que nem todos os homens são mansplainers, devem achar que ela é estúpida”. “Explicar a uma mulher que conhece homens, que se relaciona com homens, que trabalhou com homens, que tem amigos homens, que nem todos os homens são maus” é também, afinal, uma forma de mansplaining.

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"Cuidado com essa conversa sobre igualdade. Não queres crescer e tornar-te numa feminista." ©Nicole Tersigni

Nicole sabe que nem todos os homens assumem as atitudes que descreve no seu livro. Mas como dizia o romancista, jornalista e autor de comédias satíricas irlandês George Bernard Shaw, “Se queres dizer a verdade às pessoas, fá-las rir, senão vão matar-te”. O objectivo da autora é, sem surpresa, fazer rir as pessoas – não fosse ela comediante. “Se conseguires fazê-las rir, elas ficarão muito mais abertas a críticas”, explica ao P3. “Eu queria que as pessoas que experienciaram estes comportamentos [descritos no livro] conseguissem vê-los com humor e percebessem que não estão sozinhas.” Mas não só.

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Retrato da comediante e autora do livro Nicole Tersigni

O livro de Tersigni pode ser hilariante ou exasperante, dependendo de quem o lê, mas o tema que aborda é, ao mesmo tempo, bastante sério. Este livro não é uma arma apontada aos homens. Nem às mulheres. Afinal, a misoginia não se manifesta exclusivamente nos comportamentos masculinos. “Uma sociedade misógina impõe estereótipos sexistas também sobre as mulheres”, reflecte Tersigni. “Não é, por isso, surpreendente que muitas mulheres interiorizem esses estereótipos e usem desse mesmo sexismo contra outras mulheres. Mas existe uma diferença importante no que toca a intenção e o impacto dos comportamentos. Os homens comportam-se assim, consciente ou inconscientemente, para reforçar uma dinâmica de poder que os favorece.” No final de contas, Nicole considera que o mais importante é nunca perder de vista esta ideia: “Estamos nisto todos juntos e não precisamos de nos destruir mutuamente enquanto percorremos este caminho.”

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Capa do livro "Men to Avoid in Art and Life", de Nicole Tersigni, editado pela Chronicle Books
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