Educação inclusiva: no reino dos esquecidos

Antes de escrever esta crónica pedi a alguns pais de meninos com necessidades educativas especiais que me falassem nos seus maiores medos. O que ouvi deixou-me angustiada até agora.

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"Suponho que num ano atípico como este não haja um único pai/mãe que não esteja preocupado com a morte da escola como a conhecemos" Tiago Lopes

Gostava de começar esta crónica de uma forma diferente do habitual e, por isso, perdoem-me a audácia de vos sugerir um pequeno exercício de imaginação.

Ora suponham os(as) caros(as) leitores(as) que são pais/mães de uma criança que vai ingressar no 1.º ciclo do ensino básico em tempos de pandemia. Por muito que vos custe, e mesmo que discordem, para cumprir as normas instituídas pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) é sabido que não vão poder acompanhar o vosso filho além dos portões da escola. Talvez essa perspectiva, a juntar às recomendações de distanciamento físico e de utilização de máscara por parte de professores e assistentes operacionais, vos deixe apreensivos e ligeiramente ansiosos. Agora imaginem que o vosso filho, esse que entra sozinho na escola pela primeira vez, é autista não verbal. Sentiram o vosso receio triplicar? Bem-vindos ao mundo dos pais dos meninos “diferentes”.

Autistas, surdos, hiperactivos, crianças com síndromes genéticas raras… Podia continuar a enumerar deficiências e condições, mas, na verdade, seria irrelevante para o caso, porque o que importa aqui é que se perceba que estas crianças e famílias, que em anos lectivos “normais” já travam lutas hercúleas, estão muito mais frágeis e desprotegidas este ano.

Sou mãe de um menino surdo profundo, com implante coclear, a frequentar o ensino pré-escolar. Um menino de três anos que utiliza a leitura labial como complemento da audição que o implante lhe proporciona e que precisa muito dela na maioria das situações. Quando o som não é suficiente para o meu filho perceber o que lhe é dito, é na leitura labial que encontra a sua maior bengala. Mas este ano, graças à covid-19, a educadora e a auxiliar da sala do meu filho estarão de máscara e a possibilidade de leitura labial simplesmente desapareceu. Como se não bastasse, a terapia da fala que realizava na instituição que frequenta está aparentemente suspensa de forma presencial (excepto em casos de elevado risco social) pelo que teremos de nos resignar a sessões de teleterapia que são infinitamente menos produtivas.

E reparem que a nossa situação não é sequer das mais complexas. Antes de escrever esta crónica pedi a alguns pais de meninos com necessidades educativas especiais que me falassem nos seus maiores medos. O que ouvi deixou-me angustiada até agora – especialmente se tiver em consideração que, para algumas crianças, a única alternativa proposta foi a de ficar em casa, como se nestas condições a socialização e a frequência da escola não fossem ainda mais importantes do que para a população infantil em geral.

É verdade que existem algumas luzes ao fundo do túnel, como o Decreto-lei n.º 10-A/2020 que, no número 6 do artigo 13.º-B, dispensa a obrigatoriedade de máscara, mediante atestado médico, a pessoas com deficiência cognitiva, do desenvolvimento e perturbações psíquicas. Se é o suficiente? Não. Mas já acalma o coração da mãe que me dizia hoje que o filho de dez anos, portador de uma trissomia, baba-se numa quantidade tão abundante que nenhuma máscara resiste.

Suponho que num ano atípico como este não haja um único pai/mãe que não esteja preocupado com a morte da escola como a conhecemos. A preocupação, contudo, pode ter motivos diferentes: se, de um lado, uns pais se afligem com o risco de os filhos contraírem a infecção por coronavírus, por outro, há pais que se angustiam com a dureza de algumas das medidas apresentadas e o medo de que o fundamentalismo prevaleça sobre o bom senso. E ambas as preocupações são válidas. Mas juntem a isto uma condição preexistente, uma deficiência mais ou menos profunda, e verão o cocktail explosivo de ansiedade que se forma.

É assim que muitos pais estão – com o coração nas mãos à espera de ver o que vai acontecer. Mas, pior do que tudo, a sentir que, mais uma vez, os seus filhos ficaram para último. A perceberem que mais uma vez pertencem a terra de ninguém, reis e rainhas do reino dos esquecidos. É que, apesar de nos últimos tempos se repetir a palavra inclusão até à náusea, ela continua a ser pouco mais do que uma miragem. E quando se pergunta “E como faço com o meu filho surdo?” ou “E o meu filho autista, como é que as medidas vão ser adaptadas para ele?”, a resposta é quase sempre um encolher de ombros, um “Ainda não sabemos” ou um “Estamos a aguardar respostas e indicações”.

O problema? É que até essas respostas chegarem (se chegarem) há meninos e meninas perdidos e pais e mães que sentem aumentar o peso que carregam pelos dias. Sem respostas concretas nem uns nem outros terão paz.

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