Da caridade à justiça social

A pandemia covid-19 realçou a constelação complexa de factores entre a saúde pública e a segurança social, com efeitos dramáticos sempre que a descoordenação de meios e desintegração funcional dos recursos humanos e técnicos imperou.

As Nações Unidas celebram hoje o Dia Internacional da Caridade, estabelecido em memória de Madre Teresa de Calcutá, como forma de consciencializar a sociedade global para a importância das actividades voluntárias e filantrópicas em favor do outro e do bem comum. Curiosamente, a caridade parece fora de moda no mundo injusto e desigual que a pandemia agravou. O globo gira em torno de uma economia sem rosto humano que desfavorece vários sectores vulneráveis da sociedade numa crise ambiental, social e política de ténue esperança.

As organizações do sector social têm sido uma luz perene no trabalho pelo bem do outro, algumas com séculos de dedicação exemplar. A evolução conceptual recente, com a aprovação por unanimidade em 2013 da Lei da Bases da Economia Social, reconhece a transformação havida em Portugal no terceiro sector apesar de uma visão retrógrada ainda latente que lhe atribui unicamente o outsourcing do Estado para os serviços sociais num modelo medievo de caridade assistencial.

As respostas para os desafios colocados pelo envelhecimento da população portuguesa só podem ser obtidas por uma revalorização do papel das organizações sociais na proximidade local que lhes é natural e intrínseca. A pandemia covid-19 realçou a constelação complexa de factores entre a saúde pública e a segurança social, com efeitos dramáticos sempre que a descoordenação de meios e desintegração funcional dos recursos humanos e técnicos imperou. Marca também o falhanço de um modelo que desresponsabiliza o Estado na prática, mas lhe atribui poderes legais crescentes, não auditados e nunca cumpridos.

O conhecimento e experiência da realidade social concreta são um activo indispensável na construção de um novo paradigma de Estado Social inclusivo e justo – nas margens e periferias da pobreza, da solidão, da velhice ou da doença estão pessoas vulneráveis e, perto delas, temos unicamente organizações do sector social a apoiar a escassa e frágil interacção familiar.

Eis três eixos principais do que propomos na reinvenção da rede social do futuro:

1. Redefinição do papel mediador dos municípios com o sector social, ampliando as parcerias através de contratos-programa de longa duração e total transparência, em domínios articulados de desenvolvimento e inclusão social – desde a habitação e cuidados domiciliários, educação e formação profissional, cuidados de saúde e saúde mental, cultura e desporto, empresas e inovação social – com objectivos aferíveis em indicadores de desenvolvimento humano;

2. Inclusão da Economia Social nos objectivos de desenvolvimento sustentável locais e regionais, reforçando a adopção de boas práticas ambientais nas organizações sociais com participação directa no co-financiamento comunitário específico para o efeito e transformando a micro-escala social em domínios como mobilidade elétrica, descarbonização e transição para energias limpas, redução de resíduos ou cadeias locais de produção alimentar;

3. Promoção de redes internacionais de inovação social e tecnológica, com novos programas de assisted-living e envelhecimento saudável ou soluções tecnológicas que favoreçam a inclusão social e partilha de bens sociais, contribuindo para o desenvolvimento harmonioso da pessoa inserida no seu meio social, familiar e comunitário;

A caridade, como expressão autêntica de humanidade, é um compromisso colectivo para uma sociedade mais justa, inclusiva e completa, no “desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens”, como escreveu Paulo VI. Um pouco mais desse bom ânimo e o mundo pula e avança. De verdade. 

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