Moderada era a sua tia

O meu desejo é que este movimento de protesto e de indignação cresça, se organize e afirme para exigir outras políticas.

Os construtores de opinião com ideias de direita que costumam publicar os seus argumentos na imprensa, andam ultimamente muito preocupados com o radicalismo de esquerda.

Ser radical não é bom, não é aconselhável, não resolve nada, agrava, precipita. O radicalismo pode gerar consequências incontroláveis. Ser radical é um desespero que não deve servir de exemplo e inspiração para ninguém.

Só é radical quem é de extremos. Os extremos são sempre perigosos e os extremistas não passam de meia dúzia de alienados, manipulados, utilizados e descartáveis pelo sistema que os promove

Esta lengalenga repetida não consegue ir mais longe e analisar com mais rigor e profundidade teórica este fenómeno. O exercício intelectual é sempre o mesmo, os radicais são perigosos, não merecem o nosso apoio nem adesão. Eu, com toda a humildade, gostava de perguntar a esses instalados cheios de benefícios, privilégios e regalias sociais que estão muito preocupados com o crescimento do radicalismo de esquerda o seguinte: não seria mais honesto e sensato perguntar por que motivo as pessoas estão desesperadas e com comportamentos radicais?

Parece que o radicalismo é um problema sério só porque ameaça a coesão e a paz social. Sem tranquilidade nas ruas e nas instituições o grande capital tem mais dificuldade em maximizar os seus lucros. Queridos leitores, mais perigoso e explosivo que o radicalismo de esquerda é a desigualdade crescente. A falta de igualdade de oportunidades para se ter acesso aos recursos. A desigualdade tornada normal e aceite na distribuição do poder, da riqueza, do capital escolar, cultural ou simbólico. A falta de emprego ou a generalização do emprego precário.

Quando a D. Aurora do lugar de Pego Negro da freguesia de Campanhã, no Porto, doente, com 76 anos, reformada com pensão miserável, é despejada da casa onde vivia há mais de 40 anos com o filho e um neto, eu não lhe posso pedir para ser moderada porque sei que o seu sofrimento é impossível de estancar com estas políticas públicas de alojamento.

Quando a Maria do Céu, desempregada que cuida do marido doente oncológico, pede apoio económico à segurança social para comprar medicamentos e não ficar sem electricidade em casa por não ter pagado as facturas dos meses anteriores à EDP, e as técnicas lhe dizem que o sistema público não deixa cabimentar o subsidio por falta de verbas, eu não tenho coragem de lhe pedir para ser moderada na sua reacção, porque a Maria do Céu sabe que para salvar os bancos privados o estado nunca falha. No mundo da alta finança o governo não deixa ficar ninguém para trás.

Quando os serviços públicos sugerem aos idosos analfabetos para enviarem um email e marcar atendimento online, quando as linhas de contacto telefónico disponíveis estão a rebentar de chamadas e não conseguem atender os casos mais urgentes, eu não tenho condições técnicas e morais para pedir a esta gente sofrida que seja moderada.

Quando alguém que tu tanto amas leva um tiro na cabeça só por causa da cor da pele, do ódio vingativo e racista, é muito difícil pedires aos filhos da pessoa assassinada para serem moderados.

Quando o teu frigorífico está vazio e os teus filhos com fome, é provocador pedires a essa pessoa para ser moderada porque a resposta para o seu problema é ir para a fila da sopa dos pobres exibir a sua dor e humilhação

Quando recebes uma carta do Ministério da Saúde a informar que os teus tratamentos no hospital foram adiados por causa da pandemia e a tua cirurgia ainda não tem data marcada, é muito difícil pedires ao teu utente para ser moderado

Pois é, estar no terreno, no atendimento permanente, acompanhar, monitorizar, ler, estudar e avaliar o impacto das políticas sociais de austeridade sobre a vida dos mais desfavorecidos dá-nos esta legitimidade que não precisa de ser ideológica ou partidária. Os pobres estão a ficar mais pobres e têm motivos para se tornarem cada vez mais radicais. O meu desejo é que este movimento de protesto e de indignação cresça, se organize e afirme para exigir outras políticas. Mais justiça na redistribuição do rendimento, emprego com direitos, habitação pública digna, serviços públicos com mais meios e recursos, prestações sociais robustas e não esmolas de caridade.

Eu não sei se a esmagadora maioria dos meus utentes conhece Albert Camus. Não sei, sinceramente, se conhecem a expressão do grande escritor francês, “o dever de hesitar” de que fala o texto da Teresa de Sousa neste jornal no passado domingo, 30 de Agosto. O que eu sei é que entre o dever de hesitar ou decidir, eu decido estar ao lado desta gente que paga sempre com sacrifícios, perda de direitos e de rendimentos as crises cíclicas do capitalismo. Os pobres já perceberam que não vale a pena serem moderados. Quanto mais moderados, mais porrada e austeridade lhes cai em cima da pele. A moderação que as elites e a burguesia estão a exigir, é para que tudo continue na mesma. Por isso muitos já consideram que ser moderado em Portugal é hoje um acto de coragem. Quem não adere aos abaixo-assinados, às greves, às petições, às vigílias, às manifestações, é perseguido e discriminado, dizem eles. É preciso ter lata. Preocupa-me muito que os adversários políticos se transformem com o radicalismo em inimigos reais, mas mais me preocupa o silêncio e o desânimo dos que são vítimas da exploração capitalista. Por isso quando me perguntam se os meus utentes são moderados nas reacções às dificuldades da vida e ao mau funcionamento dos serviços públicos, eu respondo, “moderada era a sua tia.”

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