“Covid ou a Guerra?”

“O que é que foi mais difícil, a Covid ou a Guerra?”, ouvi eu muitas vezes. Eu percebo a pergunta.

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Um homem retira dos escombros uma menina, após um bombardeamento em Sanaa, Iémen, 2017 REUTERS/Khaled Abdullah

É atractiva a pergunta, mas será que é justa? Há muitas áreas da medicina que têm picos de grande adrenalina. Nada de novo. Vamos, aos poucos, pondo as nossas mãos e as nossas decisões em labirintos de acções complexas, em que agarramos uma vida que nos escorrega por entre os dedos, e por vezes foge mesmo. Não serão muitas as profissões em que homens e mulheres rodados, experientes, maduros e competentes vão chorar para casa quando um dia de trabalho “lhes corre mal”. Não há nada de bonito quando olhamos os familiares nos olhos e lhes rebentamos a vida com meia dúzia de palavras: “eu não pude fazer mais... os meus sentimentos”. É a vida que escolhemos... Mas também tem momentos mágicos.

Mas então como pode ser ainda mais intenso num cenário de guerra? Não é pelo medo dos tiros e das bombas que o coração acelera. Pode acontecer que seja esse o motivo, mas é raro. A intensidade emotiva vem essencialmente por dois motivos. O 1º é fácil de explicar: São muitos. Vou dar o exemplo do Iémen mas podia dar muitos outros da minha vivência. Num mês no Iémen vi mais gente a morrer do que em 10 anos nos Cuidados Intensivos em Portugal. Muito mais. Muito, muito mais. Então se baixar a faixa etária, por exemplo, para menos de 30 anos, acredito que me lembro de todas as pessoas que morreram sob a minha responsabilidade, em Portugal, desde que comecei a trabalhar há 15 anos. E no Iémen, bem recente nas minhas memórias, não me lembro da grande maioria dos jovens e crianças que me morreram nas mãos. Não me lembro. Nem das caras, nem dos porquês, nas das famílias a sofrer. E aqui é que entra o 2º motivo: o que mais foi é este sofrimento colectivo indiscriminado, é esta nuvem de fusão de memórias que se moldam num enorme aperto no estômago, toldado pela revolta e a impotência.

“O que é que foi mais difícil, a Covid ou a Guerra?”, ouvi eu muitas vezes. Eu percebo a pergunta. Consigo vislumbrar algumas semelhanças: A intensidade das emoções à flor da pele. Ter que trabalhar correndo riscos. Sentir que, mais do que uma profissão, é uma missão, uma paixão, é um dever para com todos os que nós gostamos, um dever para a humanidade e para o nosso país... Foi/é muito duro, o medo do desconhecido, o medo de morrer pelo risco que corremos, ou de “matar” os que mais gostamos pela profissão que exercemos. Muito duro. Mas depois quando chego a casa e sinto o pulso ao que se passa à minha volta, com os dramas que o Bruno Nogueira vai acabar, ou já não há mais nada de interessante na Netflix, e ainda que as férias este ano vão ter de ser “limitadas” a Portugal. É aqui que a pergunta se torna muito injusta e talvez até um pouco hipócrita.

Chamar a isto medicina de guerra ou “linhas da frente” é de um afastamento da realidade grotesco. Não nos destroem a casa, não nos matam a família toda, não nos fazem ver morrer mulheres no parto por falta de cuidados médicos, não vemos crianças a morrer por doenças facilmente tratáveis ou evitáveis por uma simples vacina que nunca lhes foi dada, porque o mundo se esqueceu deles. Quem já viu uma guerra por dentro sofre pelo que se vê no hospital, mas acima de tudo pelo que se sente fora dele.

Na pior fase da Covid (esperemos que tenha sido a pior) sofri imenso. Pelo meu medo, o medo dos meus colegas, e o medo da minha família e amigos que estavam aborrecidos em casa, mas com medo. Mas não me atrevo sequer a comparar com o que se vive numa guerra. Até porque depois de já ter estado em muitos cenários de guerra sangrentos e mortíferos, eu nunca senti que fiz parte dessas guerras. Estive lá, mas não fiz parte. Não eram os meus pais, ou os pais dos amigos que estavam com medo de morrer. Não eram os meus filhos ou os filhos dos meus amigos que estavam em risco de morrer. Não eram os meus. Não era a minha guerra. Eu podia vir embora quando quisesse. Eles não.

Abanaram um bocadinho a nossa zona de conforto e dói. Imaginem quantas dores nós não estamos a querer ver.

É preciso fazer zoom out. Ver o planeta como um todo.

A guerra é pior.

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