A cor da pele e da cabeça

Para percebermos o que significa “semiótica racial”, pensemos na candidata à vice-presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris: ela é negra nos Estados Unidos, mas não o seria em Portugal. O que é uma prova de que ser negro não é apenas uma questão da cor da pele, é também uma categoria política.

Há um novo anúncio da Mercedes que mede o teor de racismo espontâneo que existe em nós: um homem ainda jovem, negro, sai de casa com um saco de couro e as chaves do carro na mão, atravessa um subterrâneo urbano de asfalto e cimento, e dirige-se para o seu carro, um modelo eléctrico da Mercedes. No percurso, cruzou-se com um grupo de skaters (brancos, todos eles), sentados no chão ou encostados às paredes, e um deles exclama e depois pergunta: “Uau! Tens um carro eléctrico?”. O homem fica hesitante perante uma pergunta que o incomodou, e acaba por dizer: “O que queres dizer? Eu tenho um Mercedes”. A mensagem publicitária óbvia é a de que um carro eléctrico, desses que provocam espanto e inveja, é por excelência um Mercedes. Mas há também uma outra mensagem que a Mercedes quis veicular e que reside na expressão de um dos skaters, que parece transmitir a ideia de que há naquela cena um desajuste entre o carro e aquele que o conduz. Se o espectador do anúncio é levado a pensar que aquele espanto é uma manifestação de racismo, então é porque ele próprio se colocou na posição racista, já que não conseguiu olhar o dono do carro na sua singularidade, na sua indiferença em relação a uma propriedade comum, um conceito (o ser negro). Temos porém de reconhecer que a “raça” é um dos conceitos fundamentais que organizam os grandes sistemas de classificação das diferenças que operam numa sociedade. Mas o anúncio não nos conduz obrigatoriamente nesse sentido, o espanto do skater pode ter uma outra interpretação: naquele território dominado por uma tribo cultural que ocupa as margens e os subterrâneos da cidade, a mais sofisticada cultura automóvel é um escândalo.

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