Quanto mais alimento, mais “braços”... na anémona-do-mar

Uma equipa internacional de investigadores examinou mais de 1100 exemplares de anémonas-do-mar de uma espécie com dimensões muito reduzidas – a Nematostella vectensis –, a fim de perceber o que regula o número de tentáculos dos espécimes. Os resultados vieram mostrar que o número de tentáculos é tanto maior quanto mais comida for ingerida.

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Processo de desenvolvimento dos tentáculos da anémona-do-mar Anniek Stokkermans/EMBL

O nosso código genético determina, em determinada fase do desenvolvimento embrionário, que vamos ter dois braços e duas pernas. Também o número de barbatanas de um peixe ou o número de pernas e asas de um insecto está incorporado no código genético. A anémona-do-mar vem contrariar esta tendência, ao apresentar um número variável de tentáculos que, de acordo com um estudo liderado pelo Laboratório Europeu de Biologia Molecular de Heidelberg (Alemanha) e publicado esta semana na Nature, depende da quantidade de alimento consumida.

Os cnidários fazem parte de um grupo que tem exclusivamente organismos aquáticos, no qual se inserem, entre outros, as alforrecas, as medusas, as caravelas, as hidras de água doce e as anémonas-do mar. Estes animais, de ramificações precoces, têm capacidades de desenvolvimento contínuo, podendo gerar órgãos e extensões corporais ao longo de toda a sua vida. Tal como avança o artigo, essa capacidade de construir continuamente novas partes do corpo é comparável à regeneração, contudo, ao contrário da regeneração induzida por lesões, a organogénese (formação de órgãos) ao longo da vida está sujeita às alterações no ambiente.

Para perceber o que regula o número de tentáculos das anémonas-do-mar, uma equipa internacional liderada por Aissam Ikmi, investigador do Laboratório Europeu de Biologia Molecular de Heidelberg, examinou mais de 1100 exemplares de anémonas-do-mar da espécie Nematostella vectensis. “Registar um número tão elevado de tentáculos é, de certa forma, uma aventura por si só”, conta, em comunicado, Mason McMullen, co-autor do estudo e farmacêutico clínico do Sistema de Saúde da Universidade do Kansas, que passou meses a criar imagens de anémonas-do-mar para registar o número e a localização dos seus tentáculos. A Nematostella vectensis trata-se de uma espécie de anémona-do-mar pequena, que raramente atinge mais do que 1,5 centímetros de comprimento, nativa da costa leste dos EUA, e que se encontra nas águas salobras pouco profundas das lagoas costeiras e dos pântanos de água salgada.

Nos últimos anos, esta espécie estabeleceu-se como organismo modelo para a investigação científica, devido à relativa facilidade da sua desova em laboratório, ao desenvolvimento biológico facilmente acompanhado, pelo número reduzido de tentáculos e transparência adequada a estudos de microscopia, e à sua grande capacidade regenerativa. Os organismos desta espécie podem abrigar um número variável de tentáculos entre quatro e 18, mas o número comum na idade adulta é de 16 tentáculos.

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Larva de Nematostella vectensis em processo de desenvolvimento dos tentáculos Anniek Stokkermans/EMBL

Entre quatro e 16 tentáculos

Como descreve o artigo, os espécimes analisados situaram-se entre as fases de quatro e 16 tentáculos, para os quais foram registados o local e ordem da sua formação. Após a alimentação diária das anémonas no seu estado primário, com quatro tentáculos, o primeiro par adicional apareceu entre o quarto e o sexto dia, dependendo, respectivamente, da maior e menor quantidade de artémias (pequenos crustáceos) consumidas. Para definir a relação entre a entrada de nutrientes e a proliferação celular, foi igualmente estabelecido um ensaio de alimentação mínima suficiente para induzir o desenvolvimento de tentáculos. Nessas condições, os organismos foram alimentados durante três dias e depois passaram fome durante quatro dias. Desta forma, a equipa observou uma redução drástica da proliferação celular nos espécimes esfomeados.

“Controlar o número de tentáculos por ingestão alimentar faz com que a anémona-do-mar se comporte mais como uma planta a desenvolver novos ramos do que um animal a gerar um novo membro”, explica o líder do grupo Aissam Ikmi, em comunicado. “Se os humanos pudessem fazer o mesmo, isso significaria que quanto mais comêssemos, mais braços e pernas poderiam crescer. Imagine-se como seria útil se pudéssemos activar isto quando precisássemos de substituir membros danificados”, acrescenta.

Curiosamente, apesar da redução na formação de tentáculos nos organismos não alimentados, a equipa conseguiu ainda detectar um enriquecimento de gotas lipídicas, formadas devido à incapacidade dos lípidos em se dissolver, em fases primárias do crescimento de tentáculos. Um armazenamento localizado de energia que poderá servir como um mecanismo estratégico desenvolvido pelos organismos para se adaptarem às mudanças no ambiente, neste caso, às alterações imprevisíveis do abastecimento alimentar. Tal como esclarece Aissam Ikmi, “as anémonas-do-mar mostram-nos que é possível que os nutrientes não sejam convertidos em armazenamento de gordura em excesso – como é o caso de todos os mamíferos – mas sim transformados numa nova estrutura corporal.”

Definir os factores ambientais que desencadeiam mudanças morfológicas é, para a equipa, uma questão particularmente importante dada a longevidade das anémonas-do-mar, com algumas espécies a viverem durante mais de 65 anos. Agora, sabendo que o número de tentáculos nas anémonas-do-mar é determinado pela sua ingestão alimentar, o grupo planeia definir os nutrientes críticos para este processo, bem como investigar mais profundamente o papel dos músculos destes animais na definição dos locais onde se formam os novos tentáculos. “Estamos actualmente a investigar esta nova propriedade das células musculares e estamos ansiosos por descobrir o mistério por detrás delas”, conclui o investigador.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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