Pergunta à caixa!

A reconfiguração de poder promovida pelos artistas que esteve na base do ressurgimento de uma política estatal de aquisição de arte contemporânea importuna muitos agentes. Seria bom levar o tema a debate público, para que se clarifiquem mecanismos e opções e não sejam permitidas opacidades burocráticas e tráfico de influências.

Foi com espanto e consternação que vimos o PÚBLICO publicar um artigo de opinião de José Loureiro em que são feitas declarações gravosas, lançadas suspeitas, imputados factos e formulados juízos ofensivos da honra e atentatórios ao bom nome. É o discurso do ódio e da desinformação e a conversa das redes sociais a chegar a um jornal respeitável. O que se lê na opinião de José Loureiro é a revelação de um inexplicável ressentimento (termo abundante no seu estrugido de aleivosia) e do desconhecimento de factos e decisões forçosamente a esclarecer.

Como redactores de uma carta sobre o calamitoso estado das artes em Portugal, assinada há quase dois anos por mais de 400 artistas de relevo, e que teve como principal consequência (deveria ter tido várias) o ressurgimento de uma política de compras por parte do Estado abandonada há mais de duas décadas, não nos é evidente se foram motivos de foro estilístico (ou outros?) que levaram José Loureiro a não assinar a carta. Estilo à parte, goste-se ou não, a acção revelou-se eficaz, que é o que interessa.

Na sequência desta carta (não um “manifesto”, como refere José Loureiro), foi convocada uma Assembleia de Artistas para eleger os representantes a integrar a comissão de aquisições do Ministério da Cultura. Os quatro mais votados foram Manuel João Vieira, Pedro Portugal, Pedro Proença e António Olaio. Desta votação saiu uma lista de cinco nomes, que incluía três artistas (entre os quais Manuel João Vieira, que se sacrificou pela defesa da pintura) e duas curadoras. A lista foi apresentada à ministra Graça Fonseca, que aceitou sem objecções e nomeou mais três representantes do Estado. A Comissão de Aquisições de Arte Contemporânea foi criada por despacho conjunto dos ministérios das Finanças e da Cultura (Despacho n.º 5186/2019), que estabelece as suas funções e onde se diz: “No final de cada biénio, a Comissão apresenta ao membro do Governo responsável pela área da cultura uma proposta relativa aos membros [...], para efeitos de designação no biénio seguinte.”

É preciso saber como são escolhidos os membros da comissão, que, depois de nomeada, estabelece critérios, regras e estratégia para as compras. O já referido despacho dispõe que os artistas que pertençam à comissão não podem ver adquiridas obras suas por um período de dois anos e que não devem ser comprados artistas já representados na Colecção do Estado. Caso de José Loureiro: como obras suas tombaram no Estado com o lixo do BPN, não lhe foram feitas aquisições.

A nova comissão, que entra em funções em Janeiro de 2021, foi escolhida pela precedente e validada pela ministra. Não há cabala Homeostética e é miserável que três membros desse importante movimento artístico pós-paradoxológico, extinto em 1986, Fernando Brito, Ivo, e Xana, sejam arrastados vilmente para a furda do Zé.

A zona erógena desta cruzada contra a Comissão de Aquisições de Arte Contemporânea, fomentada pelos suspeitos do costume e fáceis de nomear, mostra-se porque a comissão está agora sentada numa caixa com 1,2 milhões de euros para comprar arte a artistas e galerias nos próximos dois anos. Tendo ainda a ministra Graça Fonseca afirmado publicamente que tenciona aumentar a dotação para um milhão anual até ao fim da legislatura.

Esta reconfiguração de poder, promovida pelos artistas (signatários da carta), importuna muitos dos agentes da arte contemporânea nacionais que exercem uma extraordinária pressão para que representantes das galerias façam parte da comissão... (Hã? Um bêbado a guardar a taberna?). Há movimentações sub-reptícias para que a forma de nomear a comissão seja diferente, por exemplo, tirando os artistas e posicionando representantes de instituições, ou insinuações de que o dinheiro dava mesmo jeito era ao Museu do Chiado. Seria bom levar o tema a debate público, para que se clarifiquem mecanismos e opções e não sejam permitidas opacidades burocráticas e tráfico de influências.

Sabemos historicamente que os artistas se digladiam: assassinatos, tribunais, duelos, facadas, poemas insultuosos, etc. O que infelizmente José Loureiro demonstra no seu texto, de verve medíocre, prontamente partilhado pela sua galeria nas redes sociais, é uma desprezível falta de solidariedade e um anormal ódio a outros artistas, em particular a ex-colegas de há quatro décadas que jamais o hostilizaram.

Parece que vigora em parte do meio artístico, ao contrário da maioria das profissões, a ideia de que é bom não ter palavra, poder, ou decisão sobre a própria actividade. Importa revitalizar um meio que foi tremendamente abalado pela crise de 2008 e que certamente se ressentirá ainda mais desta. Um passo foi dado. Faltam alguns mais. Há muitos artistas, ao contrário de José Loureiro, com vontade de melhorar a situação e a organizarem-se. Mãos à obra.

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