Cartilha dos moderninhos digitais e dos guerreiros de teclado

Nunca te preocupes com a qualidade das fontes, preocupa-te apenas em saber se são fontes que dizem o que tu queres que seja verdade.

1. O mundo nasceu com a Net. Se não está na Net, nunca existiu. Com a Net e as redes sociais, nasceram igualmente a democracia (a verdadeira), a comunicação, o conhecimento, a liberdade, a aproximação e a amizade entre os povos e as pessoas.

2. Usa formas abreviadas e amoráveis de nomear os instrumentos vitais: a Net, o Insta, o Face, a Wiki. Trata com ternura os teus amigos.

3. Navega pela Net respigando apenas a informação provida dos nutrientes que robustecerão as tuas convicções. Os algoritmos ajudar-te-ão.

4. Se estiver na moda X, brada que sempre gostaste de X. Se amanhã for Y, proclama que, aos três anos, já gostavas de Y, e, aos quatro, já doutrinavas os outros na devoção a Y.

5. Se uma figura abominável aos olhos de muitos — digamos: Trump ou Bolsonaro (em certas latitudes e muito mais nos contextos públicos do que nos contextos privados) — afirmar que o céu é azul, torna-se mais seguro não falar sobre a cor do céu ou alvitrar até que é amarelo, dados os prováveis contra-ataques: “Isso é o que dizem o Trump e o Bolsonaro!” Antecipo já que muitos terão concluído, pela frase anterior, que o autor destas linhas só poderá ser trumpista ou bolsonarista. (Não é, ele entende até que Trump e Bolsonaro são egomaníacos capazes de provocar danos profundos, criaturas intelectual, política e pessoalmente repulsivas, que mentem como quem respira; admitindo, porém, a hipótese de que a origem de todos os problemas da humanidade não radique apenas nestes dois.)

6. Vocifera, denuncia (denunciar é fundamental), hostiliza, vitupera, excomunga e, acima de tudo, nunca escutes quem não partilha das tuas crenças. Nunca procures perceber as raízes do pensamento do Outro, porquanto não importa persuadir o que não pensa como tu, importa, isso sim, exibir que estás do lado do Bem e o Outro da blasfémia.

7. Usa os métodos que deploras nos teus inimigos: a mentira deliberada, a sugestão de mentira, a mentira por omissão, o achatamento dos factos de modo que caibam nas tuas ideias, o insulto pessoal, os rótulos da infâmia, o assassínio de carácter. Não há casos em que alguém tenha mudado de opinião com a fórmula “eu convenço-te, porque grito e insulto mais do que tu”, mas isso não interessa nada. O objectivo, bem o sabes, é marcares o Outro com um apodo que exprima o Mal Absoluto e, em cima disso, sinalizares a tua virtude cintilante.

8. Nunca hesites em denunciar e enlamear A se A estiver a ser linchado no espaço público, ainda que nada saibas sobre o assunto. Além de ser um imperativo cívico, ajudar-te-á a esquecer, momentaneamente que seja, as tuas próprias frustrações e carências. É ainda um refrigério para a falta de amor-próprio e o auto-ódio. Não há nada mais nobre do que dar pontapés em quem está no chão.

9. Nenhum assunto é complexo. Nenhum assunto exige muita leitura, releitura e reflexão. Lê no Google umas coisas — procura os resumos mais resumidos e lê apenas se não conseguires encontrar imagens — e declara-te um especialista (o vocábulo expert talvez te empreste um matiz mais cosmopolita). Grandes mestres do passado diziam que só sabiam que nada sabiam, que dariam tudo o que conheciam por metade do que ignoravam, que a única certeza que poderíamos ter era a de que existíamos, que a única conclusão era morrer. Mas Sócrates, Descartes, Pessoa não tinham aplicações (perdão: apps), Net, Face, Insta, nem nunca sequer, coitados, consultaram a Wiki ou foram ao YouTube ou pesquisaram algo no Google. Tu podes ter opinião sobre tudo. Não chames “opinião” ao que pensas, chama-lhe “conclusões” (concluir é hoje tão espantosamente fácil e rápido), “factos”, ou como sói dizer-se hodiernamente: “factos objectivos”, “factos reais”, “factos verídicos”, “realidade objectiva”, “visão científica”. Nunca te preocupes com a qualidade das fontes, preocupa-te apenas em saber se são fontes que dizem o que tu queres que seja verdade.

10. Defende a liberdade de expressão SEMPRE, mas APENAS para as ideias que te são favoráveis.

11. O direito à privacidade (à própria intimidade) é o estertor de criaturas fossilizadas. Tais figuras jurássicas não merecem mais do que um longo bocejo quando se põem a falar de concentração de dados ou de lérias como presunção de inocência, in dubio pro reu, inquisição das redes sociais, linchamento digital, obsolescências (traduzindo: blá-blá-blá) que as redes sociais vão felizmente vassourando. Simplifica: só os corruptos e os pedófilos se preocupam com essas tretas.

12. Uma viagem não é uma experiência de conhecer o diferente. É a quantidade de fotografias (fotos) que tiraste e, preferencialmente, publicaste na Net. Não usufruas das experiências, não reflictas com base na experiência, isso não te dará gostos (likes) nem partilhas. Publica-as (posta-as) no mundo digital. Não fruas de um concerto anonimamente, ou sequer dos feitos dos teus filhos, filma tudo e partilha na Net, concentrando-te mais na câmara do que no acontecimento. (Acontecimento, que disse? Só o que é filmado e partilhado na Net ACONTECEU.) Ou tens alguma coisa para esconder?

13. Se conheceres uma palavra ou expressão inglesa para designar algo, ainda que existam cinco, dez ou dezasseis para o exprimir em português, usa a palavra ou expressão inglesa SEMPRE. Mostra que tens mundo, que és sofisticado(a), salpicando o que dizes e escreves com: spotwhateverwho careswhat the fuck?, cooldatelookskills (podes ter tudo, mas, sem skills, não irás a parte alguma; repara que muitos pronunciam algo aparentado com “esquilos” quando dizem “os skills”, repara nisso meramente enquanto mnemónica de uma palavra vital).

14. Quanto mais abreviaturas usares, mais rápida e eficaz será a tua comunicação. Quanto mais curto o teu vocabulário, quanto mais lugares-comuns usares, mais facilmente serás entendido. Escreve “k” em lugar de “que”, “x” em lugar de “ch”, corta ao máximo letras na escrita e sílabas na fala. Nunca consultes dicionários, vai lá pelo contexto, deixa-te de histórias, e, se por um estranho desígnio o fizeres, nunca o faças em papel. Isso é tão old school, tão pouco cool. E nunca te esqueças: o rigor da Wiki é cem mil vezes superior ao de uma enciclopédia. Nunca cites de um livro. Copia da Net, sem verificar autoria, ou republica uma imagem. Também não te ficará mal ter uma imagem com a inscrição: I love books.

15. O ser culto é aquele que sabe, antes dos outros, todas as músicas do momento, todas as séries do momento, todos os fóruns em que te tirarão cabalmente todas as dúvidas sobre todos os assuntos, todos os trending topics, avaliando os livros, os filmes, as séries à luz da pontuação que têm na Net. Não descures, porém, o seguinte: o que aconteceu há duas semanas é objecto museológico. T. S. Eliot chamava “provinciano temporal” a todo aquele que estava solidamente ancorado no presente (e deslumbrado com ele, poderíamos acrescentar), desconhecendo e desprezando o caudal de conhecimento e cultura dos que o precederam, mas Eliot está morto e faz parte de um mundo antigo em que as pessoas se esmeravam a escrever cartas longas, a cultivar a arte da conversa sem os dedos e os olhos constantemente presos a um artefacto tecnológico e outras cenas tipo bué cotas.

16. Uma imagem vale mil livros. Quanto mais amigos/seguidores/gostos tiveres, mais amigos com à grande terás. É na Net que as pessoas sabem quem tu és. Faz de ti o melhor produto de publicidade possível.

17. As grandes empresas tecnológicas são incansáveis na demanda da igualdade, da liberdade, da democracia, procurando, por puro amor à humanidade, evitar que uns senhores muito maus façam mal às populações. São elas o motor da nova utopia ao som de Imagine, de John Lennon.

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