Escola do século XXI ou falta de respeito pelo futuro dos mais jovens?

Quanta caricatura de escola! Quanto discurso enganoso! Por isso é tão importante ensinar os nossos alunos a pensar, para não se deixarem seduzir por facilidades e falsas liberdades e autonomias!

“A escola do século XXI”, artigo no Público de 24 de Agosto p.p., da autoria de Aurora Cerqueira (professora de Português) e de Pedro Selas (activista licenciado em Direito), é uma semi-mastigação do relatório “O Ensino e a Aprendizagem do Português na Transição do Milénio” (Associação Professores de Português – APP – 2001”), no qual se vislumbrava a barbárie cultural que se reflectiu na Reforma de 2003, defendendo a “nova escola” e o “novo professor”, tudo em prol de uma sociedade global (o novo mundo), incontrolável, que todos sabemos estimular uma corrupção desenfreada, sendo simultaneamente apologista do cansaço, cansaço esse que se inicia, como treino, logo nos primeiros anos escolares (“horários mais preenchidos compensam o sucesso”, disse Andreas Schleicher, OCDE, 2016). Todo um discurso vendido, na invocação do “novo mundo”, e que a OCDE ajuda a orquestrar, apontando o modus faciendi no ensino, “centrado nos interesses dos alunos”, “no desenvolvimento da criatividade, do pensamento crítico, de competências […], tomada de decisões, formas de trabalho que implicam comunicação e colaboração”. Ideias que os seus adeptos fervorosamente difundem, adaptando-as ao seu estilo: a “aprendizagem partindo dos interesses manifestados” pelo aluno, a “construção de conhecimento pelo próprio, favorecendo a autonomia, a responsabilidade, o espírito crítico e a criatividade […], a promoção da comunicação e a construção de relações interpessoais sólidas”. Em uníssono, o uso da designação de “resistentes à mudança” para os opositores, os que reagem criticamente a imposições que escondem objectivos que não vão a favor do Homem nem do progresso, antes alimentam a ganância e a falta de respeito pelo futuro dos mais jovens.

Não surpreende que a OCDE, no seu discurso, sempre “pedagógico” e eivado de uma pretensa bondade e preocupação pelos cidadãos, e pelo seu futuro, defenda que, no séc. XXI, ter-se-á de ir mais longe, já que a ruína do sistema financeiro foi fruto de banqueiros, “provavelmente, pessoas altamente criativas e com espírito crítico”, e que “alguns dos que têm o espírito mais empreendedor estão à frente de organizações mafiosas, em vez de servirem o seu país” (quem diria?), preconizando agora a preocupação com qualidades, como “a empatia, a resiliência, a curiosidade, a coragem e a liderança” (Andreas Schleicher, 2016). Será para rir ou para chorar?!

Sabemos que o mundo mudou, o que exige forçosamente adaptações, mas não é tolerável que se continue a apostar na exploração do Homem, nesta sociedade globalizante que atingiu o clímax ao manter-se perfidamente focada na apologia do cansaço, na mais obscena exploração do trabalho intelectual e físico, na completa ausência de compaixão, na transformação da verdade em sucessivas mentiras ou pérfidas bondades, no aviltamento do papel de Escolas e Universidades onde interferem a seu bel-prazer os “diktats” de inúmeras empresas, desvirtuando a função milenar da escola. Um mundo, em suma, onde a tecnologia, os interesses superiores de uma certa economia e a banca são dominantes, tendo-se consequentemente disseminado um feroz desprezo pelas Humanidades e pelas Artes que, na verdade, ensinam a pensar, educando a sensibilidade, desenvolvendo o espírito crítico, alimentando o espírito, estimulando a imaginação e a criatividade. Porque “sem criatividade e imaginação não [haverá] evolução científica e tecnológica” (António Damásio, 2006).

Como reagiriam a APP, a OCDE, o Ministério da Educação ou os autores do artigo se confrontados com as palavras de António Damásio anteriormente transcritas ou com as que se seguem: “Pensou-se que a educação deveria produzir indivíduos eficazes nesta sociedade e, por isso, deixou-se de lado as artes e as humanidades” ou “Como se explica a uma criança o que é a alegria, a dor, a violência, a frustração? Claro que podemos usar as ciências para definir estes conceitos, mas não será mais fácil torná-los compreensivos se recorrermos a um soneto de Shakespeare, um quadro de Pollock, um filme de Spielberg ou um tema de Mahler?”. Não tenho a menor dúvida de que hipocritamente aplaudiriam, distribuindo sorrisos forçados e sublinhando, em voz sonante, para que se ouvisse à volta, a importância do “espírito crítico” e da criatividade”, mas sem qualquer relação com o ensino das Humanidades ou das Artes, num papaguear vazio de conceitos.

Regressando ao artigo acima referido, a sua leitura não só me remeteu para o Relatório da APP, mas e, sobretudo, para um “mestre” da “École Dynamique”,[1] Ramin Farhangi, cujas ideias conheci numa entrevista de Bárbara Wong, no jornal Público de 6.2.2020. Segundo parece, veio abrilhantar “La Nuit des Idées: Ser e Estar Vivo”, numa parceria Instituto Francês, Embaixada de França e Fundação Gulbenkian. Fiquei com a sensação de estar num mundo às avessas ou no mundo do absurdo, da insensatez generalizada, relendo, por vezes, as respostas do professor, por desconfiar de inadvertidas faltas de atenção da minha parte, um pouco à semelhança do que me aconteceu com a leitura do artigo “A escola do século XXI”. Em comum, a escola perspectivada como “uma comunidade de aprendizagem”, “libertadora dos indivíduos”, que “desistiu da divisão dos alunos em turmas e em ciclos”, e “favorece percursos individuais de aprendizagem a partir dos interesses manifestados por cada educando”, fortalecendo “a autonomia, a responsabilidade, o espírito crítico e a criatividade”, o que significa que são os próprios alunos a “promover a construção do conhecimento”, podendo tornar-se “inútil” a figura do professor porquanto “flexíveis os papéis de educador (já não professor) e de educando”, anulando-se assim a autoridade do primeiro que assenta na sua competência. A mesma fobia às disciplinas curriculares que devem desaparecer pelo facto de “compartimentarem os saberes”, privilegiando-se “aprendizagens essenciais” (não reveladas) em cujos “percursos” se envolvem não só “professores”, mas também “assistentes administrativos e operacionais, famílias, alunos e todos os voluntários (…).” Escusado será dizer que provas finais, exames ou trabalhos de casa são inovadoramente banidos.

Ramin Farhangi, a dada altura da sua entrevista, e indo ao encontro dos autores do artigo, explicita mesmo que as escolhas das crianças (entre os 5 e os 18 anos) “podem ser loucas, parvas, inteligentes, boas ou más, mas são as suas e têm de viver com as consequências”, numa análise que ostenta uma agressividade e crueldade darwinistas, para além de um abandono que perturba qualquer um. Afinal, qual o papel dos adultos, qual o papel do mundo velho em que foram recebidos os mais novos? Nascem já preparados para a vida, não necessitam do acompanhamento e da ajuda dos mais velhos? Se assim fosse, teriam morrido à nascença. E a este propósito, lembro a situação por mim vivenciada, a de uma colega que justificou não ter corrigido os erros ortográficos dos alunos, nos seus trabalhos expostos na biblioteca, “dado que as palavras haviam saído assim do seu punho, daí a obrigação de as respeitar”. Questionada sobre qual afinal o papel de um professor, a resposta foi célere e parafraseio-a: o tempo e a solidariedade dos colegas iria sanando as falhas ocasionais. Perfeitas anedotas trágico-cómicas, fruto de teorias educativas que têm recebido o apoio incondicional dos vários Ministérios de Educação e por isso mesmo os autores do artigo, acima referido, lembram a quem de direito que “a legislação” existente “desde 2018, já permite todos estes avanços”. Avanços!?

E porquê esta chamada de atenção? Porque no Ministério da Educação existe um ministro que não honra a sua função, e um secretário de Estado, também reconduzido, João Costa, que esteve profundamente embrenhado na implementação e imposição da famigerada Reforma de 2003. Conseguem impor o insensato e o absurdo, pondo em causa o futuro dos alunos e ludibriando os pais e a própria sociedade, mas não travam a inqualificável sobrecarga horária que pesa sobre os alunos, do Básico ao Secundário, um reflexo da selvajaria desta sociedade global que extenua qualquer um. Preferem acabar com os programas, apesar de sempre os terem aceitado excessivamente longos e quando bondosamente intervieram, fingindo fazer qualquer coisa, foi para os esvaziar de qualidade e impor o funcional e o superficial que de forma alguma influencia a formação da personalidade dos alunos, muito menos lhes alimenta o espírito ou prepara para a vida que se avizinha difícil. Cantos desafinados de sereias que apenas seduzem os incompetentes e os negligentes!

Só gostaria que me permitissem acompanhar o desenvolvimento destas novas estratégias e metodologias educativas e avaliar os seus resultados. Houve já quem me dissesse que iria convidar-me para observar o trabalho de uma “nova escola”, mas aguardo há dois anos o convite. Recuperando, a este propósito, Ramin Farhangi, ficámos a saber que com “cinco anos de experiência”, neste tipo de escola, os resultados foram: “temos pessoas que entraram na indústria de vídeo, outro a estudar Geografia, outro Teatro e Artes Marciais”. Vale a pena comentar?

Quanta caricatura de escola! Quanto discurso enganoso! Por isso é tão importante ensinar os nossos alunos a pensar, para não se deixarem seduzir por facilidades e falsas liberdades e autonomias!


[1] Querendo aprofundar o funcionamento desta nova escola, deixo o site http://www.ecole-dynamique.org/

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