Há células sexuais que fazem com que as moscas-da-fruta anseiem por açúcar

Descoberta de cientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, fornece informações sobre a ligação entre a fertilidade e a nutrição.

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Ovários da mosca-da-fruta Carlos Ribeiro/Zita Santos
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Ovários da mosca-da-fruta Carlos Ribeiro/Zita Santos

Já se sabia que as moscas-da-fruta são fãs de doces. Mas até que ponto vai a sua gula e para que pode servir? Uma equipa de cientistas do Centro Champalimaud mostra num artigo científico publicado esta segunda-feira na revista Nature Metabolism que mudanças nas exigências nutricionais de células sexuais das moscas-da-fruta fazem que estas anseiem por açúcar – este é um processo essencial para estes animais formarem os ovos. O estudo é um arranque para se perceber mais sobre a ligação entre a fertilidade e a nutrição.

Neste trabalho, a equipa focou-se no sistema reprodutor da mosca-da-fruta, mais propriamente no processo de formação de ovos. Carlos Ribeiro, um dos coordenadores do trabalho, explica em comunicado que um ovo começa com uma única célula sexual que se divide, se multiplica e cresce. “Os descendentes dessa célula original transformam-se nos diferentes tipos de células que constituem o óvulo completo.” Acompanhou-se então as células ao longo de todo o processo de produção do ovo.

Verificou-se assim que essas células passavam por processo de reprogramação metabólica, tal como acontece nas células cancerosas. Isto é, já se sabia que quando uma célula se torna cancerosa altera a sua maquinaria celular e consome, preferencialmente, açúcar, transformando-o em “blocos” necessários ao processo de multiplicação. Depois, viu-se precisamente que as células sexuais da mosca-da-fruta estavam a activar o mesmo mecanismo utilizado pelas células cancerosas para promover a proliferação celular, o que aumentava a necessidade por açúcar. Portanto, estavam a tornar-se gulosas, nota-se no comunicado.

Tendo em conta estes resultados, a equipa quis perceber se a reprogramação metabólica das células sexuais no ovário influenciava a escolha alimentar da mosca-da-fruta. Ao compararem as preferências alimentares de moscas normais com as de moscas incapazes de produzir ovos, viram que o conjunto de moscas estéreis tinha um apetite pelo açúcar significativamente inferior ao das moscas normais.

A equipa manipulou ainda a capacidade das células para metabolizarem o açúcar. Resultado: a produção de ovos e o apetite por açúcar eram ambos afectados. Para os cientistas, isto demonstra que não são as células que originam a mudança de comportamento: quem o faz é o programa metabólico. “É este programa específico que faz com que as moscas obtenham o combustível necessário para a produção de ovos”, lê-se no comunicado.

Por fim, questionou-se como é que as alterações celulares no ovário chegam ao cérebro e conseguem mudar o comportamento das moscas. Para isso, investigou-se a molécula Fit, que é produzida no tecido adiposo que envolve o cérebro da mosca. Observou-se então que os níveis da Fit são significativamente superiores no grupo de moscas inférteis e que esses níveis são regulados pelas tais células sexuais. Quanto mais destas moléculas a mosca tem, menos gosta de doces. “Esta é uma forte indicação de que o efeito das células sexuais no cérebro é mediado por esta molécula”, considera Carlos Ribeiro, acrescentando que ainda não se sabe como ocorre a comunicação entre o ovário e o tecido adiposo do cérebro. 

E nos humanos?

As células que originam o ovo na mosca-da-fruta têm sido muito usadas para estudar processos como a proliferação celular e as células deste estudo já tinham sido identificadas antes. Zita Santos (também coordenadora do trabalho) salienta ao PÚBLICO que aquilo que não se sabia era que durante os processos de formação do ovo estas células sofrem uma alteração no metabolismo, isto é, na capacidade de transformar açúcares noutras moléculas. “A este processo dá-se o nome de reprogramação metabólica e descobrimos que é essencial para formar o ovo”, frisa.

Além de ser crucial para a formação do ovo, também se verificou que a reprogramação metabólica manipula o sistema nervoso da mosca e faz com que esta consuma mais açúcares. Neste estudo identificou-se uma “janela” (uma fase da reprodução do óvulo) onde o processo de reprogramação metabólica acontece, mas ainda não se sabe exactamente qual é a identidade destas células.

E o mesmo pode acontecer nos humanos? “Todo o processo de formação do ovo na mosca é análogo ao que acontece em humanos com certas diferenças”, responde Zita Santos. A investigadora refere que há algumas provas de que alguns dos processos existam em humanos, mas realça que ainda estamos longe de perceber exactamente quais são as suas semelhanças, se estes processos de reprogramação existem ou se haverá mesmo uma ligação com alterações do apetite em humanos. “Estas serão algumas questões que pretendemos, no futuro, começar por explorar em modelos mamíferos.”

Este trabalho abriu assim uma nova linha de investigação para o estudo de estratégias alimentares capazes de evitar o declínio da fertilidade relacionado com a idade e a doença oncológica. Para isso, Carlos Ribeiro e Zita Santos foram financiados com 200 mil dólares (cerca de 168 mil euros), por agora, pelo Consórcio Global para a Longevidade e Igualdade Reprodutiva (GCRLE, na sigla em inglês) para iniciarem os seus estudos. Este projecto quer perceber os mecanismos que desencadeiam o declínio reprodutivo feminino. 

“Com a idade, as mulheres perdem a capacidade de se reproduzirem devido a um aumento na dificuldade de engravidar, bem como há um aumento dos defeitos do feto”, indica Zita Santos. Por isso, com base no trabalho agora publicado, os cientistas querem perceber se os processos de “desprogramação metabólica” se verificam ao longo do tempo. “Como existe uma ligação entre a nutrição e o metabolismo, a nossa visão é que se conseguirmos identificar quais as alterações metabólicas por detrás deste declínio reprodutivo, poderemos providenciar nutrientes-chave através da dieta de forma a reverter este declínio.” Inicialmente, o estudo será feito precisamente com moscas-da-fruta – afinal, as fêmeas passam por um processo semelhante ao nosso de envelhecimento reprodutivo. Além disso, como o processo estudado é partilhado por células cancerosas, os resultados poderão ser ainda relevantes para o tratamento do cancro.

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