O caso do assimilado aldrabado. Subversões do colonialismo português em Lourenço Marques

Em meados do século XX, na capital da colónia portuguesa de Moçambique, Lourenço Marques, alguns moçambicanos com o estatuto de “indígena” tomavam de empréstimo a cidadania europeia de amigos assimilados para poderem usufruir do centro da cidade, de onde tinham sido excluídos pelo sistema colonial. Esta é uma reflexão sobre o significado histórico destes indivíduos, localmente conhecidos por “assimilados aldrabados”

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O teatro Varietá, inaugurado em 1910, foi um espaço fundamental dos lazeres da população colonial na moderna Lourenço Marques

Foi durante uma entrevista recente a um habitante do bairro suburbano de Chamanculo, em Maputo, que pela primeira vez ouvi falar da existência de “assimilados aldrabados”. Hoje com 85 anos, Chame nasceu na ilha de Moçambique e mudou-se para Lourenço Marques em 1949, onde viveu desde então. Nesta conversa sobre a sua juventude, usou a expressão “assimilado aldrabado” enquanto respondia a uma pergunta sobre o hábito de ir ao cinema dos habitantes dos bairros dos subúrbios da então Lourenço Marques. Este era um dos temas da minha investigação sobre cultura popular urbana nas antigas cidades coloniais portuguesas.

A expressão “assimilado aldrabado” é intrigante. As obras de jurisprudência colonial, as leis que regeram a organização imperial e as suas instituições, e que estipulavam o quadro de direitos e deveres das diversas populações nestes territórios africanos sob administração portuguesa, nada revelam sobre esta categoria, inclusive nas minuciosas notas de rodapé feitas por especialistas com predisposição para regulamentar. Ela também não consta nas revistas e coleções de livros publicadas por instituições estatais portuguesas durante o Estado Novo, onde diversos especialistas discorreram sobre questões coloniais e, provavelmente, será também difícil encontrá-la num documento de arquivo.

Sobre a condição do “assimilado”, em contrapartida, muito se escreveu. Os assimilados eram os indivíduos que conseguiram demonstrar à administração colonial portuguesa que tinham alcançado um nível de evolução social que lhes permitia transitar da condição de “indígena” para a de “civilizado”, o que lhes garantia acesso à cidadania, comprovada pela posse de um documento, conferida pelo direito público e privado português. Os sucessivos estatutos do indigenato aprovados durante o século XX, aplicados a Angola, à Guiné-Bissau e a Moçambique, consagravam a divisão entre “indígenas”, genericamente os africanos negros e os seus descendentes naturais dos territórios coloniais, e “civilizados”, genericamente os europeus ou os filhos de europeus já nascidos em África. A passagem de uma categoria para a outra exigia ao indígena candidato à assimilação que falasse português, tivesse bom comportamento e educação e hábitos compatíveis com a cidadania portuguesa, o que implicava que abdicasse dos seus usos e costumes tradicionais, nomeadamente os familiares e religiosos, arranjasse um emprego que lhe garantisse a si e aos seus dependentes um sustento, e não fosse refractário ao serviço militar. O espírito da lei atribuía ao processo de assimilação a razão última da bondade do projeto colonial português, consagrando o seu principal objetivo: retirar os povos colonizados do atraso milenar em que se encontravam.

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O teatro Gil Vicente, inaugurado em 1913, era, para os habitantes dos subúrbios da capital de Moçambique, um lugar praticamente inacessível DR

Entre a lei e a prática

Apesar de ausente dos documentos oficiais, a categoria de “assimilado aldrabado” não é desprovida de utilidade analítica. Em inúmeros aspectos, ela descodifica com maior rigor a lógica da sociedade criada pelo colonialismo português em Moçambique do que a interpretação das leis e da doutrina coloniais. A legislação e a disciplina estatal são indicadores necessários para definir um projeto imperial, mas são limitados para representar a vida quotidiana. O “assimilado aldrabado” foi uma criação da vida urbana da Lourenço Marques colonial, apenas compreensível à luz das relações de poder vigentes.

A resposta de Chame sobre a sua experiência do circuito de exibição de cinema nessa época, é disso reveladora:

Havia cinema onde o preto não entrava, por exemplo, o Gil Vicente, mesmo assimilados os gajos não admitiam. Agora o Scala, mesmo no Manuel Rodrigues e no Varietá tinha um cinema um bocado mais baixo, um assimilado aldrabado entrava e ia lá para cima onde a malta chamava o galinheiro. O que é um assimilado aldrabado? Eu não sou assimilado, quero andar a passear de noite, ia ter com um conhecido e dizia “empresta-me lá a tua cidadania”, ele ficava em casa, e eu passei aquela noite na baixa. Muita vez a gente andava assim. Fui para o Scala, já era novidade. Fui ao Manuel Rodrigues, era novidade. Era só isso. Poucos iam daqui para lá. Havia poucos, os tal assimilados.

As palavras de Chame ajudam a clarificar a categoria e o seu significado na capital de Moçambique colonial. Assim, o “assimilado aldrabado” não era alguém com o estatuto de assimilado que havia sido burlado. Pelo contrário, o assimilado desta história era cúmplice de uma estratégia para subverter o sistema de assimilação, protagonizada por alguns moçambicanos dos bairros suburbanos de Lourenço Marques. Estes indígenas apropriavam-se temporariamente da “cidadania” de amigos assimilados, com a cumplicidade destes, levando-a emprestada. E para que servia o empréstimo da cidadania? A posse do documento de assimilação possibilitava que, antes de anoitecer, um habitante do subúrbio da cidade usufruísse das ruas do centro da cidade, onde vivia a maioria dos colonos de origem europeia. Deslocando-se durante os seus itinerários laborais para a então chamada “cidade de cimento”, por oposição à suburbana “cidade de caniço”, os moçambicanos indígenas, nem de noite nem de dia podiam sentar-se numa esplanada, banhar-se numa praia onde estivessem colonos, em qualquer piscina, utilizar espaços públicos, como jardins, frequentar associações, alguns estabelecimentos comerciais, ou ir a um cinema. Estes interditos eram aspetos do modelo de segregação racial que vigorava em Lourenço Marques, não constavam das leis que sustentavam o sistema de assimilação português, isto é, na sua definição de cidadania. Como assinalou Chame, para entrar em alguns lugares, como por exemplo nos cinemas do centro da cidade, nem o estatuto de assimilado era suficiente: o facto de os assimilados não serem brancos era motivo para impedir o acesso, mesmo que se apresentassem no seu traje mais rigoroso. Com sorte, iam para os galinheiros.

Se a lei colonial era injusta, vedando um conjunto de direitos à maioria da população moçambicana, as leis informais que regulavam a vida quotidiana estabeleceram uma desigualdade social ainda maior, cuja representação é indispensável para descrever a experiência colonial portuguesa. Em resposta a este sistema de exclusão generalizado, alguns indígenas recorreram à ilegalidade para conquistar direitos básicos de cidadania. Se importa perceber com detalhe as circunstâncias em que eram utilizadas estas estratégias, se eram praticadas tanto por homens como por mulheres e para que efeitos específicos, a categoria do “assimilado aldrabado” revela, ainda assim, as lógicas de poder e o universo de informalidades que governavam o dia a dia na cidade colonial.

O elogio do aldrabão

As definições que nos dicionários descrevem a expressão “aldrabado”, o ato de “aldrabar” e o sujeito que aldraba, “o aldrabão”, não são particularmente benévolas. Uma coisa aldrabada é algo “feito atabalhoadamente” ou “mal feito” ou “confuso”. O ato de “aldrabar”, por sua vez, é uma impostura, uma ação moralmente condenável realizada por alguém que está a fazer algo considerado errado por quem o julga. De acordo com esta gramática moral, o aldrabão pode ser tido também como um mentiroso, um trapaceiro, um vigarista, um espertalhão, um farsante, um patranheiro, um ludibriador e por aí adiante.

Quando descreveu a ação dos assimilados aldrabados Chame não se sujeitou a esta ordem moral. O sistema de circulação dos documentos de assimilação entre os habitantes dos bairros suburbanos não era apenas operacional como justo, proporcionando a alguns indígenas um salvo conduto temporário para desfrutarem do centro da cidade, atenuando assim o racismo inerente à organização urbana de Lourenço Marques. Ao longo da nossa conversa, tornou-se claro que para Chame esta forma de aldrabar não era apenas louvável, como legítima e, em certa medida, engenhosa e mesmo bonita. O aldrabão não ludibriava apenas a lei que decretava a desigualdade, mas o abastardamento colonial desta lei, que tornou o quotidiano ainda mais desigual e violento do que o prescrito na legislação. Da perspetiva da lei, a vida na cidade colonial resultava de um conjunto de ilegalidades que reforçava a violência de um sistema de injustiças, uma aldrabice conduzida pela administração em conluio com diversos interesses locais.

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Cinema Império, inaugurado em 1951 na estrada de Angola, numa das principais artérias dos subúrbios de Lourenço Marques, era destinado ao público dos subúrbios da capital. Para muitos moçambicanos, foi na tela do Império que pela primeira vez contactaram com o cinema

A memória pessoal de Chame tem uma expressão mais vasta. Quando conversei com outros habitantes dos subúrbios coloniais de Lourenço Marques sobre os “assimilados aldrabados” os sorrisos denunciaram cumplicidade com estas estratégias. Para os habitantes dos bairros suburbanos, estas ações eram justificadas. O “aldrabão”, enfrentando o centro da cidade, um espaço onde os negros sofriam uma inferiorização sistemática, era celebrado como um herói, imaginativo e corajoso. Beneficiando do “empréstimo da cidadania”, ele limitava-se a democratizar direitos que eram exclusivos de outros habitantes da cidade. O “assimilado aldrabado” pertencia assim a uma galeria extensa de heróis populares – malandros, bandidos sociais – que faziam justiça utilizando as armas possíveis contra a lei. Este caso “do assimilado aldrabado”, como outros episódios ocorridos em contextos históricos distintos, inspira um debate mais genérico acerca das circunstâncias que tornam ou não legítimo indivíduos e grupos desafiarem a lei como estratégia para lutar por direitos negados ou ignorados pelas instituições encarregues de aplicar essa lei.

Para quem se ocupa da história dos mundos coloniais, a celebração comunitária do aldrabão é ainda importante por outros motivos. Evita, por um lado, que populações como as que habitavam as periferias urbanas de Lourenço Marques sejam tomadas como felizes sujeitos do império, assimiladas pela cultura lusófona do interrelacionamento e do multiculturalismo, como é comum em leituras nostálgicas da experiência colonial portuguesa, que mais do que análises históricas são dimensões do nacionalismo português contemporâneo.

Ora o valor atribuído nos subúrbios de Lourenço Marques ao talento do assimilado aldrabado não é compreensível fora de um quadro colonial segregador e violento, cuja dinâmica integradora se fez, fundamentalmente, pela inclusão forçada dos africanos em regimes laborais servis. Por outro lado, permite que no âmbito da crítica a este sistema de exploração das populações locais não sejam representadas apenas como vítimas passivas do poder colonial. O assimilado aldrabado não era um herói das grandes narrativas políticas. Explorado de inúmeras formas, reagiu, reclamou a cidade para si, tinha curiosidade e vontade em andar nas suas ruas, de usufruir dos seus jardins, cafés e restaurantes, de ir aos cinemas e aos campos de futebol, de se apropriar, enfim, da cidade moderna. Aquela era também a sua cidade, que não seria conquistada sem luta.


Antropólogo, ICS-ULisboa


O projeto O Império colonial português e a cultura popular urbana: visões comparativas da metrópole e das colónias (1945-1974) foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CPC-CMP/2661/2014)

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