Como a música dá conta do Brasil

Hoje pede-se, nas ruas do país que recusou o exercício responsável da memória, a volta do período mais repressor e abismal do regime, durante o qual o Estado perseguiu, exilou, torturou e assassinou brasileiros. Tal como naqueles tempos, hoje voltamos mais uma vez à nossa música.

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Andreia Gomes Carvalho

“A nossa música é sempre uma grande verdade”, disse Dorival Caymmi a Caetano Veloso no Fórum Romano, em 1983. No momento dessa conversa, os dois estavam a meio dos preparativos de um festival organizado pela prefeitura de Roma dedicado à cultura baiana. Dois anos antes do fim da ditadura militar no Brasil.

No passado dia 7 deste mês, Caetano e seus filhos fizeram a tão antecipada live, que pela criatividade de Paula Lavigne, empresária e companheira de vida do baiano, recebeu logo o epíteto de “lenda”. Era o aniversário do artista e incontáveis famílias sintonizaram a televisão, acto reflexo, como quem tacteia um interruptor no escuro, para ver e ouvir o Brasil cantar. “Sexta tem a live do Caetano.” Foi o que manteve o ânimo de muita gente naquela semana, outra entre tantas de quarentena. Poucos dias depois, o Brasil chegaria à actualização sombria da tragédia em curso: cem mil mortos.

Ambos os eventos, o monumento à música popular brasileira e o descarrilamento da crise de saúde pública vestida de necropolítica, tomaram lugar com o pano de fundo de um Brasil que não cuidou das feridas vincadas, dos sulcos profundos que se assomaram ao largo de duas décadas de ditadura e que pareciam estar perto de acabar lá atrás, quando Caymmi falou da verdade que a nossa música traz, pertinho de Caetano. Hoje pede-se, nas ruas do país que recusou o exercício responsável da memória, a volta do Acto Institucional n.º 5, o período mais repressor e abismal do regime, durante o qual o Estado perseguiu, exilou, torturou e assassinou brasileiros.

Tal como naqueles tempos, hoje voltamos mais uma vez à nossa música, possível somente na vastidão dessa invenção que é o Brasil, realizável somente por um povo com as chagas abertas que tem, que atesta em cada canto o sofrimento como política pública, encenado por uma elite administrativa colonial e colonialista. Música nossa, possível somente pela coragem de génios como Caymmi, Gil, Elza Soares, Criolo e outros cujas vozes trouxeram alegria e pura força às pessoas que vivem no país mais racista do mundo.

Na voz de Caetano e de seus filhos, naquela noite leonina, o Brasil reencontrou-se. A música popular brasileira fez-se de novo, como reiteradamente se faz, a hipótese mais evidente e comprovada de nossa coincidência connosco mesmos. No fragmento de cada verso, na despretensão de qualquer universalidade, no oceano imperscrutável de nossas vozes e sons, nossa música dá conta de nós mesmos.

Levados a esta terra por uma narrativa fundida em duas partes, do lado oposto do qual se diz alguma oportunidade e muita ambição de alguns está a dor e a desumanização de tantos outros, encontramos no samba, na bossa nova, no MPB, no rap e no hip-hop a verdade espontânea surgida apesar do abafamento insistente daqueles que querem uma eterna colónia penal. Nosso rosto que não é discernível no espaço, mas que é pura voz solta no tempo, foi-nos lembrado por Caetano, reminiscência de tantos outros. A lição de casa que ficou deste encontro é o exercício de dizermos a nós mesmos a violência que fundou esta terra, exemplificada, recentemente, pela atitude criminosa do governador do estado de Minas Gerais, Romeu Zema, que despejou 14 famílias e destruiu uma escola no acampamento Quilombo Campo Grande. Isto no meio da pandemia.

Marcamos os 12 anos da morte de Dorival Caymmi a 16 de Agosto. Cabe-nos voltar à nossa música para buscar a alegria, sim, mas sobretudo para entender que o sofrimento humano deslegitima o que abaixo dos trópicos é feito em nome de Brasil nenhum.

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