Beirute: acidente ou atentado?

O que poderá ter acontecido? Podem configurar-se três cenários: foi acidente, um atentado ou um acto intencional que possa fazer parecer um acidente.

O Médio Oriente está há décadas na cena internacional com intricados conflitos regionais. A pandemia não acabou com eles, apenas os tornou menos visíveis, para o resto do mundo.

A explosão de uma grande quantidade de nitrato de amónio, que estava há anos guardada no porto de Beirute, provocou cerca de 200 mortos, seis mil feridos e deixou ainda cerca de 300 mil desalojados. As imagens do rasto de destruição assemelham-se ao cenário da guerra civil entre 1975 e 1990.

A incúria das autoridades incitou manifestações e uma enorme revolta – pede-se o fim do regime -​, que aumentou ainda pela violência das forças de segurança contra manifestantes. Agora é tempo da comunidade internacional se unir para fornecer o apoio humanitário necessário e urgente. Esta catástrofe veio numa altura em que o país está a atravessar uma grave crise política, económica e social, marcada pelo colapso financeiro eminente provocado pela desvalorização da sua moeda (80%) e demissões do Governo, que alimentam o descontentamento social desde há vários meses.

Por outro lado, a inflação atinge níveis históricos. Estado falhado e falido, controlado por uma elite corrupta e profundamente dividido pela política, religião e história. Esta crise sem precedentes, desde a guerra civil, deslegitimou um Governo frágil, que se demitiu. A crise demonstra também a permanente luta pelo poder e tensão sectária, numa sociedade, onde há o reconhecimento de 18 religiões - país com cerca de 7 milhões de habitantes – que condiciona o sistema politico. E quase todas têm uma certa representação no sistema político num equilíbrio difícil de conseguir. É uma articulação entre as principais entidades: Presidente (cristão maronita); Presidente do Parlamento (muçulmano xiita) e primeiro-ministro (muçulmano sunita).

O Hezbollah é uma organização política e paramilitar fundamentalista, sendo considerada uma força na política libanesa, bem como um movimento de resistência apoiado por grande parte do mundo árabe. É considerado também uma organização terrorista pela maioria dos países incluindo a União Europeia.

O Líbano localizado na costa leste do Mediterrâneo, rodeado de países em constantes conflitos armados que duram há décadas, como Israel, Iraque, Irão e Síria. É também uma zona estratégica para a economia regional. Beirute e o seu porto serão sempre alvos estratégicos de um país no levante que faz dele um importante entreposto comercial. Ao nível geopolítico tem um panorama mais ameaçador, pois está junto a um conflito regional, onde têm ocorrido “guerras por procuração”. O Líbano está encravado entre Israel e a Síria a que está umbilicalmente ligado e vê nele uma extensão do seu território.

Por sua vez, Israel pretendeu fazer dele um Estado-tampão sob sua influência. Por outro lado, o país ainda não abandonou a polarização religiosa e política que a guerra civil deixou como legado e é o reflexo da disputa de soberania entre a Arábia Saudita (sunita) e o Irão (xiita). O Líbano nasceu da iniciativa dos franceses, que entre as duas guerras arrancaram este pedaço de Síria histórica para tentarem criar um país para os árabes cristãos, maioritários então naquela faixa costeira mais ou menos coincidente com a antiga Fenícia.

O clima de tensão tem vindo a aumentar nos últimos tempos e o sentimento de revolta é cada vez maior em Beirute. O efeito da pandemia agravou ainda mais a situação económica que o país atravessa. O que poderá ter acontecido? Podem configurar-se três cenários: foi acidente, um atentado ou um acto intencional que possa fazer parecer um acidente.

O acidente poderá ter ocorrido pela deflagração de um incêndio após um trabalho de soldadura. As autoridades libanesas dispunham da avaliação de riscos. Por isso a responsabilidade, por negligência, no acidente deve ser considerada. Avaliação: mais provável. Há uma cultura de negligência, corrupção, e transferência de culpa endémica supervisionada por uma classe política incompetente, que despreza o bem público. Não está claro qual combinação desses elementos permitiu que uma “bomba de retardo” permanecesse num depósito quase seis anos!

No que diz respeito ao segundo cenário, o Hezbollah – partindo de uma lógica racional – não tem qualquer tipo de interesse em levar a cabo um atentado, porque isso iria alienar parte da população que pretende reconquistar para por em causa o poder vigente. Por outro lado, caso a ameaça tivesse sido concretizada por um grupo terrorista, já teria sido reivindicado. Avaliação: pouco provável.

Em relação ao terceiro cenário a motivação podia estar relacionada com o bloqueio do porto, tendo em vista negar o acesso a armamento, numa fase de grande tensão social. Isto poderia ser concretizado por actores externos com interesses (Israel ou Arábia Saudita), ou actor interno (facção sunita do Governo). Por sua vez, sabe-se que o Hezbollah tem mísseis armazenados na região. Não é por acaso que se diz serem os rockets utilizados pelo Hamas na Faixa de Gaza contra Israel provenientes de instalações do Hezbollah em Beirute.

Recorde-se que o primeiro-ministro israelita alertou, na Assembleia Geral da ONU (2018), para a existência de três estruturas de armazenamento de materiais explosivos sob orientação e controlo do Hezbollah, em áreas civis, em Beirute.

A coincidência entre as instalações do Hezbollah e o local onde ocorreu a tragédia não deixa margens para dúvidas: pode tratar-se da concretização de um risco já identificado e negligenciado em função do poder político libanês estar refém do Hezbollah. Caso tenha sido este cenário dificilmente se saberá pelo menos no curto, médio prazo. Avaliação: provável.

Neste contexto, importa realçar que existe uma permanente e crescente tensão entre Israel e o Hezbollah. O Líbano e Israel estão tecnicamente em guerra. No final do mês de Julho ocorreu um grave incidente em que as forças de defesa israelitas abriram fogo sobre um “comando terrorista” que tentava infiltrar-se junto à fronteira, após ter sido abatido um drone israelita. A reacção do primeiro-ministro Netanyahu foi enérgica: “O Hezbollah e o governo libanês são responsáveis por qualquer ataque que saia do Líbano. O Hezbollah brinca com fogo, nossa reacção será forte”. Por sua vez, a embaixadora dos EUA na ONU, afirmou em Maio, que o Hezbollah “estava num processo de se armar e alargar as suas operações”.

Qualquer impulso revolucionário deverá ter a sua origem em tensões tribais, sectárias e ideológicas. Neste âmbito, mesmo que uma única versão oficial do incidente seja apresentada – e seja verdade -, muitos libaneses não acreditarão.

Sem mudar radicalmente o sistema político do Líbano, nenhuma das reformas essenciais será possível, bem como a sua reconstrução. O desfecho desta crise terá repercussões geopolíticas — interessa à Europa, aos EUA, à Rússia, ao Irão e à China, que parece disposta a ocupar um eventual vazio.

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