Viagens em tempo de cólera

Sair de férias com crianças é sinónimo de um dia de trabalho no Gulag. Começa com o fazer de malas e a dificuldade em balancear o feng shui entre ter capacidade suficiente para empacotar roupa adequada para os dois extremos da jangada de pedra e conseguir estar dentro dos limites ridículos das companhias low cost.

Foto
Miguel Manso

O ping do telefone denuncia uma notificação nova na caixa do correio. Começo a ter palpitações e a suar. Tal como o fiel amigo de Pavlov, tenho o sistema nervoso central completamente condicionado à chegada de emails. Pudera: entre voos e carros de aluguer cancelados, horários mudados e quarentenas quando regressarmos ao Reino Unido, já tivemos que alterar os planos de férias de Verão com a família 14 vezes no último mês. A nossa casa tornou-se uma verdadeira agência de viagens. De momento tenho para a troca um voo para Sevilha e crédito da Vueling que permitirá viajar às minhas próximas três gerações de descendentes.

No entanto, desta vez, a notificação não resulta em mais um calafrio criado por outra necessária mudança radical dos planos, mas sim um sentimento de alívio. A companhia aérea confirma que o voo de amanhã para a Península Ibérica vai em frente. É sinal de que o nosso “Brexit” está confirmado (o nosso “Regrexit” depois organiza-se à volta de um prato de presunto). Menos mal, significa que as últimas sete horas de preparação de viagem não foram em vão. Sim, longe vão os tempos em que metia numa mochila dois pares de cuecas e um fato de banho e me encaminhava para Heathrow pronto para ir descobrir mais um destino, pulando de alegria e batendo com os calcanhares com a leveza própria de quem não tem mais responsabilidades do que chegar vivo a casa ao fim da noite de sábado.

Sair de férias com crianças é sinónimo de um dia de trabalho no Gulag. Começa com o fazer de malas e a dificuldade em balancear o feng shui entre ter capacidade suficiente para empacotar roupa adequada para os dois extremos da jangada de pedra e conseguir estar dentro dos limites ridículos das companhias low cost. A 12 euros por quilo, cada par de sapatos extra resulta numa dose de sardinhas a menos a contribuir para o plano de recuperação económica de Portugal. Se depois considerarmos a limpeza e arrumação da casa, preparação de entretenimento para a viagem (duas horas de Disney para os anestesiar de forma a não mexerem na máscara ou se recordarem das necessidades fisiológicas), avisar os vizinhos para estarem de olho e prevenirem que a nossa casa se torne numa comuna de “okupas” e empacotar máscaras e gel desinfectante suficientes para fornecer os lares do Baixo Alentejo, calculo que o tempo de preparação de viagem seja por volta das quatro horas por criança.

Aproveito a minha experiência académica para consolidar as minhas observações empíricas relativas às viagens em tempos de cólera na seguinte equação:

onde n é o número de filhos, k é o coeficiente low cost (0<k<Ryanair) e c19 é a constante de incerteza de viagem em tempo de covid-19.

Como bons pais de família que somos (e graças à estimativa generosa do Google Maps, “normalmente 50 min - 5h”), chegamos ao aeroporto com três horas de avanço. Não nos deixam entrar até aos 90 minutos de saída do nosso voo, por isso damos umas voltas ao bilhar grande para sincronizar as sestas dos miúdos e acabar com o que sobrava de combustível, o que tem a vantagem de tornar o nosso regresso ao Reino Unido às duas da manhã numa excitante caça à bomba de gasolina aberta.

Já no aeroporto, verifico que um dos poucos verdadeiros benefícios da covid-19 foi tornar a experiência de check in, segurança e embarque o mais eficiente possível, sem as cotoveladas e os moches do costume. Mais Andanças, menos Primavera Sound. Já com as mãos sem epiderme de tanto as esfregar com álcool, sentamo-nos na nossa fila e tentamos meditar para nos abstrair das comichões causadas pelos potenciais vírus que nos rodeiam. Um raio de sol e o primeiro vislumbre de mar, areia e céu azul em seis meses anuncia a nossa chegada. O desembarque é ordeiro (ainda que em polvorosa) e sinto lágrimas imaginárias de alegria a lavarem-me a alma por dentro ao pisar o chão da nossa terra (pai que é pai não chora). Se não fosse o coronavírus, emularia o sumo pontífice e daria um chocho ao alcatrão. 

Sugerir correcção