Fantasmas do passado

Vir repescar ao fundo do baú as ideias que os “sacrifícios compensam” ou o “empobrecimento é redentor” choca com tudo o que foi positivo nos últimos anos. Mas, não basta manter o que está para enfrentar a crise económica que se perspetiva.

Os monstros da economia estão todos aí, perfilados à escala mundial: as quedas do PIB, congelamento de investimentos, desemprego, explosão da pobreza, retrocesso do comércio internacional. A pandemia é o diabo que os libertou numa velocidade inédita e, no espaço de poucos meses, preparou-nos uma descida ao inferno.

A incerteza abre as portas à angústia, a antecâmara do medo, que espreita na esperança de nos apanhar desprevenidos. Mas, na resposta à maior crise das nossas vidas, o pior que podemos fazer é perder a calma e abraçar o medo. Isso tolda o raciocínio, dá espaço para o erro e passamos a ser mandados pela batuta do desespero. Não são boas companhias para este momento difícil.

A primeira coisa a fazer é manter a cabeça fria, olhar para o que provou ser solução e aprender com isso, analisar os erros e evitar a sua repetição. A última década tem as lições perfeitas a que temos de prestar atenção. Busquemos no passado, então, os caminhos para um futuro melhor do que aquele que nos anunciam.

A fadiga do capitalismo já era visível antes das últimas crises. No último meio século assistimos a uma longa tendência de queda da taxa de crescimento à escala mundial. A crise financeira de 2007/2008 caiu em cima desta tendência da mesma forma que a pandemia o está a fazer: acontecimentos extraordinários numa dinâmica estrutural. A dinâmica estrutural advém de escolhas ideológicas que se provaram erradas para a economia e para as pessoas: aumento das desigualdades, degradação de investimento público, fragilização dos Estados, desproteção dos trabalhadores, precariedade laboral. Estas escolhas eram repetidas ainda com mais força, inquestionáveis, em resposta a momentos de crise.

Ainda se lembra quando diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades? A crise vinha dos salários que não merecíamos, de direitos que eram regalias, de serviços públicos pesados com “gorduras” que afundavam o orçamento nacional. Afirmavam estas certezas para propagandear a inevitabilidade dos cortes, do emagrecimento do Estado, da redução dos direitos. Uma descida infernal por teimosia ideológica, como hoje já sabemos.

E as empresas públicas vendidas ao desbarato? Foram-se jóias e anéis para gáudio de privados que compraram barato e com lucros garantidos. A TAP ou os CTT são os exemplos mais visíveis — mas não os únicos — para concluir do desastre destas privatizações e da alienação de posições estratégicas para o país. A crise foi a desculpa para o negócio, a teoria do choque que deu cobertura ao plano político em defesa de uma pequena elite, retirando o jogo económico da esfera democrática.

No confronto à teoria do choque começou-se a recuperação do país. Não foi mantendo o que estava, foi avançando na recuperação de rendimentos, defesa dos serviços públicos, valorização de direitos: aqui está a chave que abriu a porta do futuro ao país, que rompeu a chantagem da inevitabilidade. Não se foi tão longe quanto poderíamos ter ido, mas demos dados passos fundamentais que mostraram como uma política diferente pode ter resultados melhores. Conseguimos isso depois das eleições de 2015, fazendo a economia crescer e o desemprego diminuir. O “milagre” português passava por políticas diferentes daquelas que estavam a levar o mundo e a Europa à estagnação.

É verdade que podíamos ter ido mais longe, a pandemia mostrou como era necessário: a precariedade foi o selo de desemprego para dezenas de milhares de pessoas, os serviços públicos fizeram milagres face ao investimento oprimido pelas metas do défice. Que conclusões retirar para a resposta a esta crise?

Vir repescar ao fundo do baú as ideias que os “sacrifícios compensam” ou o “empobrecimento é redentor” choca com tudo o que foi positivo nos últimos anos. Mas, não basta manter o que está para enfrentar a crise económica que se perspetiva. Mais direitos para as pessoas e a defesa do emprego mudando a legislação laboral não exige sequer mais orçamento. O reforço dos serviços públicos e a recuperação para a democracia das escolhas estratégicas na economia são garantias sobre as nossas respostas comuns. Estas são as soluções indispensáveis que aprendendo com o passado nos garantem um futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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