Aulas virtuais no ensino superior: quem fala e quem pensa?

Acredito que a digitalização das aulas será, se tomarmos boas decisões, um convite para novas abordagens na sala de aula e para novos papéis na situação pedagógica.

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Reuters/Athit Perawongmetha

Quando no dia 7 de Março recebia a mensagem do reitor da Universidade de Lisboa sobre a suspensão das aulas presenciais estava longe de medir as alterações à condição de estudante e de docente. A digitalização do ensino não é só um fenómeno benéfico e seria relevante profissionais, decisores e cidadãos discutirem as possibilidades destas opções tecnológicas.

Vários estudos nas ciências sociais mostram como soluções tecnológicas inovadoras podem alterar drasticamente configurações humanas. O livro da antropóloga Meryl Alper (Giving Voice. Mobile communication, disability and inequality, MIT Press, 2017) mostra precisamente isso retratando a forma como pais de crianças com deficiências neurológicas interiorizam as tecnologias digitais para reconhecimento de voz. Se existe parte de verdade nesta hipótese, porque afinal de contas o iPad é fácil de manusear e a app facilmente disponível, sabe-se, por outro lado, que as soluções digitais são altamente desiguais na oportunidade de acesso, de uso e de interacção entre humanos. Ao observar as práticas destas famílias, Meryl Alper registou um uso mais inclusivo para as mais abastadas, e para grupos mais vulneráveis economicamente e socialmente, a existência de múltiplos obstáculos que podem ser sinónimo de desistência.

Lembrei-me desta obra durante o confinamento porque é cirúrgica e útil a sua análise para o contexto educativo em situação virtual. Sublinha a importância em pensarmos nos outros não de forma universal e a necessidade em estamos alertas aos contextos socioeconómicos dos nossos alunos. Através de plataformas que substituíram a sala e o espaço do campus, pensámos que poderiam acontecer aulas como dantes. Também pensámos que todos estariam em situação de igualdade perante o conhecimento ou a situação de exame.

Irei só usar algumas experiências para mostrar ambas as possibilidades mais e menos benéficas das aulas virtuais. No último mês, finalizaram-se os exames na universidade. Uma aluna de licenciatura que tivera bons resultados, mas cuja nota baixara na última prova, explicou-me que o seu exame se tinha desenrolado no meio de uma discussão familiar, longe do silêncio de qualquer sala de exame. Nesta categoria de situações que diferenciam os estudantes, também se encontram numerosos alunos que viram o seu espaço de vida reduzidos a dezenas de metros quadrados e sem rendimentos para viver dignamente. Onde estão os estudantes durante a aula e como vivem não são questões sem interesse; pelo contrário, porque aqui se reflectem as desigualdades de contextos familiares com dimensões económicas, culturais e afectivas.

Mas nas minhas aulas virtuais também surgiram novos debates para os quais nunca os estudantes tinham sido convidados: por exemplo, nas várias fases do confinamento, os estudantes reflectiram de forma pertinente sobre a exequibilidade do programa online; também se preocuparam com a relevância de certos conteúdos face à situação da covid-19; opinaram sobre um provável regresso às aulas presenciais. Foi assim que a discussão em torno de assuntos como programas, contextos de ensino, métodos pedagógicos e avaliação se tornou objecto de diálogo entre estudantes e docentes universitários. Neste caso, a transição para aulas virtuais transformou-se num formidável laboratório de debate e de capacitação dos alunos para a democracia. Acredito que a digitalização das aulas será, se tomarmos boas decisões, um convite para novas abordagens na sala de aula e para novos papéis na situação pedagógica.

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