Entre Beethoven e a electroacústica na bienal Aveiro_Síntese

Até 20 de Setembro, o festival dá voz às novas gerações de criadores e intérpretes ao lado das grandes referências do género.

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O agrupamento ars ad hoc foi impulsionado pela bienal Aveiro_Síntese DR

A bienal Aveiro_Síntese, organizada pela associação Arte no Tempo, está de regresso a vários espaços da cidade, com dez concertos que darão a ouvir, entre 27 de Agosto e 20 de Setembro, novas criações de compositores portugueses e estrangeiros em conjunto com obras de referência da música electroacústica e algumas incursões pelo legado de figuras intemporais como John Dowland (1563-1626) e Ludwig van Beethoven (1770-1827), cujo 250.º aniversário se comemora em 2020. A quarta edição do festival inicia-se esta quinta-feira, às 22h, na Igreja das Carmelitas, precisamente com o programa Dowland vs Barrett, por Hugo Simões (guitarra) e Nádia Carvalho (electrónica), que apresentam obras do célebre compositor inglês em diálogo com a exploração que dele faz a sua compatriota Natasha Barrett (n. 1972), bem como algumas improvisações.

Estreias absolutas e primeiras audições em Portugal distribuem-se por concertos em que a tecnologia tem um papel primordial, em diálogo com intérpretes e agrupamentos que, apesar dos seus percursos ainda breves, se têm destacado pela qualidade. Salientam-se, entre outros, a Orquestra XXI, que reúne músicos portugueses residentes no estrangeiro num programa que inclui  a estreia em Portugal de Radio Rewrite, de Steve Reich, e obras de Iannis Xenakis e Giacinto Scelsi  (dia 5, às 19h, no Pátio do GrETUA); o mais recente projecto do percussionista Nuno Aroso (Clamat – colectivo variável,  com música de Steve Reich, Luís Pena, João Pedro Oliveira e Panayiotis Kokoras), a 19; e os dois concertos do grupo de câmara ars ad hoc, com música de Beethoven e novas composições por ela inspiradas (dias 30 e 4).

Já na sexta-feira, às 22h, no Claustro da Igreja da Misericórdia, terão lugar duas performances de electrónica, com o artista sonoro e designer Carlos Santos e com o compositor e performer João Carlos Pinto. Neste mesmo espaço, mas um dia depois, será assinalado o centenário de O Gabinete do Dr. Caligari (1920), o mais célebre filme de Robert Wiene, cuja exibição conta com música ao vivo por Tiago Cutileiro e Marta Navarro; a 3, poderá ali ouvir-se emblemática obra de Luigi Nono La Lontananza Nostalgica Utopica Futura, para a qual o violino de André Gaio Pereira se conjugará com a projecção sonora de Ricardo Guerreiro e o desenho de luz de Pedro Fonseca.

Criação e formação

Criado em 2002 a fim de dar a conhecer o repertório da música electroacústica, combinando obras históricas e novas criações, o festival Aveiro_Síntese foi retomado em 2016 enquanto bienal, dedicando especial atenção à música de câmara mista e à integração de jovens músicos em formação. Actualmente faz parte da programação do Teatro Aveirense e conta com o financiamento da DGArtes e das EEA Grants, sendo a programação da responsabilidade de Diana Ferreira, crítica do PÚBLICO. E a aposta nos jovens tem eco em vários concertos. No dia 6, por exemplo, realiza-se o concerto Nova Música para Novos Músicos, decorrente de um projecto que prevê a encomenda de obras mistas (com instrumentos acústicos e electrónica) a compositores portugueses, destinadas à formação de alunos de diferentes níveis, dos seis aos 18 anos (às 19h, no Teatro Aveirense). Nesta ocasião serão estreadas peças encomendadas a Carlos Caires e Luís Pena, sob a direcção de Nuno Aroso, com a participação de estudantes do ensino artístico. Outro exemplo é o concerto de 20 de Setembro, no qual, ao lado de uma obra histórica como Voyage Absolu des Unari vers Andromède, de Xenakis, se dá voz a compositores em formação ou recentemente formados seleccionados pela Arte no Tempo no âmbito do programa Música em Criação, que em 2020 destaca os compositores Cláudio de Pina e Marta Domingues.

No plano da interpretação, a Arte no Tempo serviu em 2013 de impulso à criação da Orquestra XXI, que entretanto se autonomizou, e, em 2018, do grupo de câmara ars ad hoc, formado por instrumentistas portugueses ainda jovens que complementaram os seus estudos no estrangeiro e que mostram grande empenho na “divulgação do grande repertório de música de câmara” e na “música dos nossos dias”. Tendo em vista os Dias da Música de 2020, a Fundação Centro Cultural de Belém encomendou ao ars ad hoc dois programas à volta da nova música criada em torno de Beethoven: suspensos devido à pandemia, esses concertos integram agora a programação do Aveiro_Síntese. O primeiro, já este domingo, inclui a estreia de dois quartetos de cordas, de João Carlos Pinto e de Ricardo Ribeiro, música acusmática de Ludger Brümmer e a Grande Fuga, op. 133, de Beethoven. O segundo, no dia 4, gira em torno da Sonata op. 111, de Beethoven, contando com a estreia de obras de Carlos Caires e Kristine Tjøgersen. Será ainda interpretada música de Luís Pena e de Joana Bailie, e o andamento lento da Sonata op. 111.

Segundo Diana Ferreira, “cada compositor pegou no desafio de forma diferente”. Entre os que partiram da Grande Fuga, “Ricardo Ribeiro compôs para quarteto de cordas explorando o conceito de círculo, numa forma simbólica, como movimento, tempo e expansão, utilizando excertos da ‘Ode à Alegria’ que os músicos recitam de forma algo livre”. Por seu turno, Ludger Brümmer fez uma obra acusmática, que será apresentada em oito canais, “utilizando excertos sonoros do quarteto de Beethoven, que o compositor coloca em movimento, explorando transições entre motivos”. No caso da Sonata op. 111, João Carlos Pinto “fez uma análise paramétrica”, por exemplo, “identificando a cabeça do tema e fazendo uma extrapolação para direcções físicas e quase gestuais que os movimentos melódicos possam ter” e “transcrevendo de forma quase literal” o resultado da sua análise para o quarteto de cordas. Kristine Tjøgersen “compôs um quarteto para flauta, clarinete, violino e violoncelo com vídeo e uma gravação áudio, em que encontramos uma citação da sonata op. 111”, e Carlos Caires fez um trio (viola, violoncelo e piano) “com muitas notas, em que ouvimos o trilo do primeiro andamento da sonata”.

O violoncelista Pedro Vaz, director artístico do ars ad hoc, explica que apesar de cada um dos instrumentistas do grupo vir de uma escola diferente há um objectivo partilhado: “Aperfeiçoar a abordagem nos aspectos técnicos para podermos soar como um organismo uno, visando alcançar algum tipo perfeição.” Por isso considera crucial “ter uma visão a longo prazo, saber o que se quer realizar em dez anos, desenvolver uma voz própria”. Tal implica a coordenação de vários factores, “como as escolhas de programas e dos membros do grupo, as parcerias com instituições e as colaborações com compositores”.

Em 2019, o ars ad hoc trabalhou com o compositor Beat Furrer, de quem fez a estreia em Portugal do quinteto intorno al bianco (2016). “Estudámos várias obras suas compostas entre 1986 e 2016 que são tecnicamente muito exigentes e têm uma linguagem tão particular que requerem anos de estudo e performance. Por isso é tão importante a visão a longo prazo”, diz Pedro Vaz. É possível que o ars ad hoc venha a gravar música de Beat Furrer, mas não antes de 2022. Dos planos do grupo fazem parte possíveis colaborações com compositores consagrados como Enno Poppe e Helmut Lachenmann, mas também com compositores mais jovens “que mostram estar num caminho prometedor, tanto em Portugal como noutros países”.

Quanto às estreias que o ars ad hoc irá realizar no Aveiro_Síntese, Pedro Vaz refere que “o programa acabou por tornar-se bastante ecléctico”, contando com obras que ilustram “escolas de pensamento por vezes opostas”. O desafio principal será fazer deste mosaico heterogéneo, com duas obras chave de Beethoven no centro, “concertos que levem o ouvinte numa viagem musical com algum sentido”.

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