Aqui Trump não se safava

Com a nossa lei, Trump nunca ousaria recusar uma intimação para entregar documentos fiscais ao Parlamento ou ao tribunal. Não fomos à Lua, mas nisto estamos mais à frente.

Entre o divertido e o preocupado, acompanho à distância as peripécias do exótico presidente Trump, especialmente a batalha judicial em que está envolvido por se recusar a entregar a sua declaração fiscal ao Congresso dos Estados Unidos e a um Grand Juri de Nova York (órgão judicial que decide se há matéria para julgamento criminal). Vale a pena recordar a cronologia: em 2011, prometeu que revelaria os documentos quando Obama mostrasse a certidão de nascimento e provasse que é americano; em 2014, acusado de não cumprir a promessa, disse que só o faria se fosse candidato a presidente; em 2016, em plena campanha eleitoral, continuou a empatar dizendo que, afinal, era preciso esperar pelo fim da auditoria fiscal a que estava a ser sujeito; em 2017, já eleito, quando se soube que as auditorias de rotina a que estão sujeitos todos os presidentes não impedem a divulgação das suas declarações fiscais, mudou de agulha outra vez para dizer que talvez (sublinho o talvez) entregue os documentos quando deixar de ser presidente; em 2020, à beira de nova eleição, apesar dos tribunais já terem decidido que Trump pode ser intimado a entregar os documentos fiscais, os seus advogados emperram o mais possível o processo com mil e um pretextos e argumentos jurídicos infindáveis. Uma anedota sobre o ridículo político: um presidente/candidato a lutar nos tribunais para impedir que o público e as autoridades que o podem responsabilizar tomem conhecimento da sua situação fiscal; um presidente/candidato que, segundo investigações do New York Times, não terá pago impostos durante 18 anos e terá criado um esquema para fugir ao fisco – coisa de pouca importância pública, como se vê.

Os americanos foram os primeiros a chegar à Lua mas em muitos aspectos ainda precisam de aprender a voar melhor. Desconheço os pormenores da legislação americana, mas é evidente que a situação contraria valores internacionalmente estabelecidos, nomeadamente na “Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção”, que estabelece o princípio do conhecimento público dos rendimentos e património dos titulares de cargos políticos como instrumento de transparência e responsabilidade e de prevenção do enriquecimento ilícito e da corrupção no sector público.

Portugal tem nesta matéria legislação bem robusta e alinhada com as exigências de reforço de transparência e com o programa global de combate à corrupção e branqueamento de capitais das Nações Unidas, União Europeia, Conselho da Europa e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (se a legislação “funciona” é outra conversa que não cabe agora aqui). Recentemente, a Lei 52/2019, de 31 de Julho, estabeleceu um regime ainda mais apertado de limitações ao exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos e de obrigações de declaração e publicitação dos rendimentos, património e interesses, incluindo o recebimento de ofertas e hospitalidades, e respectivo regime sancionatório. Com a nossa lei, Trump nunca ousaria recusar uma intimação para entregar documentos fiscais ao Parlamento ou ao tribunal. E mais, a pressão social seria tão intensa que não sobreviria politicamente a tamanho desplante. Não fomos à Lua, mas nisto estamos mais à frente.

A lei aprovada há um ano introduziu ainda outro mecanismo reforçado de transparência e fiscalização pública que não é comum na maior parte dos países: juízes e procuradores do Ministério Público passam também a apresentar declaração de rendimentos, património e interesses. A mudança não sofre contestação e ninguém vai certamente armar-se em Trump para tentar fugir às obrigações. Porém, há aspectos que têm de ser agora cuidadosamente regulamentados porque o regime de publicidade das declarações aplicável aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos não pode ser igual ao de um juiz. Não é comparável a situação de quem exerce uma função profissional, com exclusividade remuneratória absoluta e vitalícia, durante mais de 40 anos, com a do deputado ou governante, que vai transitoriamente para a política, durante 4 ou 8 anos, e depois regressa à sua actividade profissional normal ou vai trabalhar para o conselho de administração de uma grande empresa que acabou de tutelar. Qualquer pessoa percebe as diferenças.

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