Reguengos: transformar um drama humano numa conveniente controvérsia jurídica

A conversa em “off”, mesmo não podendo ser usada, modela e modula a narrativa jornalística. Ela não é por isso irrelevante nem destituída de interesse jornalístico e os entrevistados, designadamente políticos experimentados, sabem disso.

1. O caso do Lar de Reguengos de Monsaraz levanta duas questões essenciais. São elas que devem ser respondidas e é à luz delas (e das eventuais respostas que recebam) que todas as acções, omissões e reacções devem ser analisadas e avaliadas. A primeira questão é a de saber o que se passou, o que falhou e de dar uma satisfação – que até pode ter contornos jurídicos e indemnizatórios – às vítimas, aos familiares e à comunidade em geral. A segunda questão é a do estatuto dos mais velhos nas nossas sociedades actuais e das políticas públicas que são prosseguidas para dar resposta às suas necessidades e das suas famílias.

2. A principal falha de António Costa, da sua ministra da Solidariedade e do seu Governo é a de continuar a desvalorizar o que se passou no Lar de Reguengos, mais concretamente, a morte, largamente inexplicada, de 18 pessoas. Primeiro, porque nunca houve por parte deles uma declaração simples, categórica e directa a lamentar o sucedido e a garantir uma investigação cabal e completa. Agora, encontram-se com certeza dezenas de frases, dispersas em entrevistas, que podem servir de refúgio ou escape para dizer que o lamento e a garantia de apuramento de responsabilidades foram feitos afinal. Mas vêm a destempo e a reboque da exigência de esclarecimentos. Se nada tivesse sido exigido na comunicação social e nas redes sociais, a ordem de serviço era apenas e só a de tentar passar por entre os pingos da chuva. Mais, mesmo o reconhecimento de falhas – que, note-se, nunca chega a ser uma declaração de pesar ou de empatia nem um pedido de desculpa – e as juras de averiguação foram produzidas pela ministra e pelo primeiro-ministro em contextos de claro “desvio de atenções” ou “passa-culpas”. Nunca há uma declaração categórica e sem reservas. Ou há-de ser sobre o relatório da Ordem dos Médicos, a sua pertinência e legitimidade; ou sobre a possibilidade jurídica e deontológica de utilizar avaliações tidas em conversas privadas.

Mais uma vez, não são as mortes em Reguengos e o apuramento das responsabilidades que verdadeiramente contam e preocupam. O que conta é a competência ou incompetência para fazer relatórios; o que releva é a discussão sobre a possibilidade de considerar conteúdos de conversas havidas em off, inadvertidamente chegados ao público. Em poucas palavras, os mortos de Reguengos, o sofrimento das suas famílias e o drama que viveram os trabalhadores e utentes do lar está reduzido a um problema de direito administrativo e a um debate de direito constitucional e deontologia jornalística. No direito administrativo, o estafado problema do lugar, das atribuições e competência das ordens profissionais; no direito constitucional, o sempiterno conflito entre o interesse público das informações e a legitimidade da forma como foram obtidas ou disseminadas. O Governo, pela veia engenhosamente distrativa do primeiro-ministro, conseguiu transformar o drama do Lar de Reguengos de Monsaraz num anódino caso de direito administrativo e num picante debate de direito constitucional.

3. O primeiro-ministro, já em “off”, mas não exactamente em privado, terá feito observações altamente críticas e em tom pouco adequado, a propósito da actuação dos médicos no Lar de Reguengos. É evidente que declarações feitas em “off” não podem ser divulgadas. Mas se, contra os mais elementares princípios deontológicos, caírem na esfera pública – que hoje não se resume à comunicação social, mas se ampliou enormemente com as redes sociais –, passamos a ter um problema. O problema põe-se, pois, apenas e só quando, contra a ética jornalística, há uma divulgação inadvertida ou até intencional. Será necessário censurar a prática, será necessário contextualiza-la, mas, numa parte importante dos casos, não será possível ignora-la. E não sendo possível ignora-la, não será também possível evitar que seja discutida e avaliada. Infelizmente, nesta matéria, mesmo jornalistas de grande gabarito, têm usado padrões variáveis consoante os interlocutores. E isso, em particular na idade libertina das redes sociais, não ajuda a consolidar os ditos pilares deontológicos.

4. Não falta quem lembre, talvez com razão, que as declarações visadas de António Costa não põem em causa valores essenciais da comunidade (vida, democracia, paz) e, por isso, nenhuma razão há para contemplar qualquer excepção. Em todo o caso, e olhando à experiência internacional, mesmo abstraindo dos “tablóides”, muitos seriam os órgãos de comunicação que julgariam diferentemente e achariam publicamente muito relevante a divulgação de uma declaração em que um chefe de governo, em plena pandemia, utiliza a expressão “covardes” para se referir à actuação de médicos.

De toda a maneira, importa ainda fazer algumas precisões. Mesmo que merecendo igual protecção de reserva e de sigilo, uma conversa em “off” não é uma conversa privada nem da vida privada. A conversa em “off”, mesmo não podendo ser usada, modela e modula a narrativa jornalística, carrega-lhe nas corres e afia-lhe os ângulos. Ela não é por isso irrelevante nem destituída de interesse jornalístico e os entrevistados, designadamente políticos experimentados, sabem disso. Ao que acresce que há certos juízos que, mesmo feitos em privado e enquadrados nesse contexto privado, não deixam de ser graves e censuráveis. Uma coisa é dizer que alguém não cumpriu a sua missão ou se recusou a cumpri-la; outra, é apodar esse alguém de covarde. E uma coisa é confessa-lo em casa à mesa ou desabafar com os assessores; outra é dizê-lo em “off” no culminar de uma entrevista.

5. Tudo isto merece ponderação e reflexão, contribuindo para melhorar práticas e praxes. O mais importante é que a reunião de hoje entre a Ordem dos Médicos e o primeiro-ministro corra bem. E que voltemos ao princípio: a pôr em primeiro lugar as pessoas que viveram e vivem o drama de Reguengos, sem ilusionismos políticos, sem espírito de facção e sem lusas reverências.

SIM. Revolução Liberal de 1820. A memória de um momento tão decisivo já é fraca. E a pandemia matou muita da sua projecção. Valha-nos o PÚBLICO, que tem feito um notável trabalho de comemoração.

SIM. Povo bielorrusso. A manifestação de domingo são a prova de que as democracias liberais não podem abandonar os bielorrussos à sorte do seu ditador ou dos constrangimentos da geopolítica.

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