No bairro

O medo de se ser infeliz até se ser velho, quando a infância no meio da merda prometia ser auspiciosa. O medo de se ser infeliz quando já se é, já se foi desde sempre e já se sabe que assim será. Assim são as casas do bairro em que cresci.

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Uta School/Unsplash

A televisão sempre alta de manhã à noite, a violência do insulto na ponta da língua, a falta de espanto, a falta de asseio e de arrumação, a falta de ambição por uma vida melhor, a falta de gosto nos objectos que atulham as divisões da casa. As roupas baratas, amontoadas em roupeiros com cheiro a naftalina, na tentativa de camuflar o indisfarçável odor da humidade. A falta de ambição e de brio em si próprio e nos filhos.

A preguiça de engomar as roupas, de escovar os dentes com cáries, sobretudo os dentes de trás “que não se vêem, só se te rires com a boca aberta”. Não querer saber do corte de cabelo nem da depilação mal-amanhada a gillette, que faz picar as pernas e as meias de nylon compradas na loja do chinês durante o Inverno. O gosto pelo bom e barato, pela pechincha, por enganar quem tem dinheiro nem que seja por vinte cêntimos, por “vingar os nossos” à chapada, por cultivar o inimigo fora e dentro da casa.

Mas também a entreajuda dos vizinhos, que convivem no limbo entre a camaradagem e o desdém, mas que quando é preciso “estamos cá para isso”. Os gritos da mulher do polícia, que leva pancada, e que todos ouvem e ninguém diz nada. O cão da porteira gordo como um texugo, a roçar a barriga na pedaleira do elevador quando entra e sai. O cheiro a desinfectante nas escadas, a vizinha que barra com Quitoso a cabeça dos filhos à varanda, para não lhe ficarem o cheiro e os bichos dentro de casa.

A falta de dinheiro, que não estica, o emprego de merda que te come os miolos e te entristece a cada semana. Os sacanas dos putos que estão cada dia mais espigadotes e mais altos do que o pai. As avós em frente aos televisores, acompanhadas pelas “Cristinas” da vida. Os gatos vadios a roerem espinhas numa tigela, colocada sabe-se lá por quem atrás de um dos postes de electricidade. O cheiro a lixo junto aos contentores atulhados. O som dos chutos de bola, os assobios e os gritos dos entusiastas do futebol. A discriminação e inveja por quem foi estudar e agora volta “armada em doutora”. Ainda assim, a admiração que não se pode mostrar, o elogio raro, assumido a custo e dito não ao próprio, mas aos seus pais ou avós.

A luz branca da cozinha, a comida cheia de gordura, a solidão do som da colher de sopa a bater na tigela. O medo de se ser infeliz até se ser velho, quando a infância no meio da merda prometia ser auspiciosa. O medo de se ser infeliz quando já se é, já se foi desde sempre e já se sabe que assim será. As palavras afectuosas guardadas a sete chaves num armário que vem de várias gerações, sobretudo a palavra amor. Essa, a mais valiosa, bem escondida a vida inteira, talvez só proferida depois de cerrado o caixão de um ente próximo. Assim são as casas do bairro em que cresci.

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