Uma conversa privada não deve ser assunto público

Ao exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e liberdades individuais, estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em princípios essenciais e a menosprezar os nossos direitos.

No jornalismo ou na política, como na vida, não vale tudo. Não vale pegar numa conversa privada entre o primeiro-ministro e um jornalista, divulgada sem consentimento e com violação de uma das regras mais sagradas do jornalismo, para criar uma polémica pública – porque há direitos de privacidade que não se podem desproteger; porque quando se tem uma conversa privada exprimem-se estados de ânimo, ideias ou opiniões isentas da reflexão e da racionalidade que se exigem no espaço público. Que a indignação do dia nas redes sociais recuse estes princípios basilares das sociedades democráticas percebemos: que a Federação Nacional dos Médicos ou a Ordem dos Médicos, naturalmente indignados com as palavras de António Costa, propaguem uma frase solta, pronunciada em privado e divulgada à revelia do seu autor, é difícil de perceber.

As declarações em off são um dos mais preciosos instrumentos que os jornalistas têm para garantir o direito à informação. É com base nesse instituto que se cria uma relação de confiança entre fontes e jornalistas e se obtêm informações de interesse público. Saber numa conversa solta e privada que um governante tem uma ideia inflamada sobre este ou aquele assunto serve ao jornalista para contextualizar o seu pensamento ou as suas opções. Não significa que essa ideia subordine a sua acção. Há excepções? Sim, quando aquilo que se diz em privado é uma ameaça à segurança, à vida ou à coexistência democrática. Dizer em privado que houve médicos que tiveram comportamentos censuráveis está longe de acolher essas situações extremas. Pode ser grave, e é grave, mas não justifica a violação da privacidade. 

O estado cada vez mais conflitual para que caminhamos torna as posições como a que o PÚBLICO aqui exprime cada vez mais difíceis de explicar e de assumir. Como dizia na semana passada David Justino, referindo-se a outro contexto, é preciso coragem para ser moderado. Até para defender princípios básicos. Foi por isso que o PÚBLICO não reagiu às primeiras polémicas do vídeo. É por isso que só reage agora, quando a questão ganhou uma dimensão pública e política incontornável. Quando aquilo que devíamos preservar (segredo profissional, privacidade), já está irremediavelmente perdido. 

O que aconteceu deve obrigar os jornais a reforçar os mecanismos de protecção do sigilo profissional – mas o caso em apreço extravasa a discussão jornalística. Remete-nos para esse erro perigoso que leva muitos a pensar que temos o direito de saber tudo o que um político diz ou pensa, até em privado, acreditando que essa via aumenta a transparência e melhora a democracia. É uma ilusão. Ao exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e liberdades individuais, estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em princípios essenciais e a menosprezar os nossos direitos.

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