Com quatro barcos atracados aos cais, os caxineiros têm no vírus um novo adversário

Receio de uma paralisação do sector faz aumentar preocupação noutros sectores de uma comunidade onde muitos dos habitantes dependem do mar.

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Paragem das traineiras é o assunto das conversas em Caxinas

Todos os dias, de há quarenta anos para cá, a rotina de Antero Castro é feita do cumprimento dos mesmos horários que conhece desde essa altura. Sina de muitos caxineiros, começou a ir ao mar aos 13 anos, idade em que se fez pescador, com orgulho, por vocação e por passagem de testemunho. Nos 53 anos de vida que soma, passou mais horas a olhar para a costa do que a olhar da costa para o mar. Quiseram os últimos meses, por força de um vírus que está onde há gente, que ao chegar a terra, já de manhã, sinta a insegurança de poder não voltar a entrar no mesmo dia no barco onde trabalha, com mais uma dezena de camaradas.

Em tempos de pandemia continua a cumprir a mesma rotina, mas com hábitos adaptados a novas exigências. Agora, antes de sair de casa, mede a febre e coloca a máscara para seguir “descansado” das Caxinas, em Vila do Conde, para Leixões, Matosinhos, de onde partem vários barcos como o seu para o mar alto em busca de sardinha. No regresso, já no cais, “sempre de máscara”, conta os minutos para voltar à base. Faz o caminho, “sem grandes desvios”, e vai descansar.

Todas estas precauções, servem para garantir que o seu ganha-pão continue assegurado. Não bastavam as preocupações que quem anda no mar sempre teve, agora existe mais uma ameaça – o de ser apanhado pela pandemia. Ciente dos riscos, com a certeza de que tudo tem feito para prevenir o contágio, defende que em primeiro lugar está a saúde pública. Porém, não anula outra necessidade que considera igualmente forte - a da subsistência. Sem desvalorizar o zelo que considera necessário para conter o novo coronavírus pede: “Deixem-nos trabalhar”.

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José Pereira sobreviveu à covid-19, depois de 11 dias em coma

Covid-19 chegou à pesca

Este pedido é ao mesmo tempo uma resposta ao cenário que se desenhou nos últimos dias. Quatro barcos de pesca de Vila do Conde e Póvoa de Varzim estão parados em Matosinhos desde que surgiram casos de infecções por covid-19 nas respectivas tripulações  Há cerca de duas semanas oito pessoas testaram positivo no José Dinis. Na última semana, até quinta-feira, o Virgílio Miguel, o Pedro André e o Pedro Mariana foram apanhados pelo vírus, com uma infecção cada um. Cada traineira terá na sua tripulação entre 12 a vinte trabalhadores. Ao todo, estarão sem trabalhar cerca de 80 pessoas. O PÚBLICO contactou a Administração Regional de Saúde do Norte e algumas associações de pescadores para saber se havia actualização de números, mas sem sucesso.

Em zonas piscatórias, como é o caso das Caxinas, o impacto de uma paragem no sector representa um choque em cadeia com estilhaços a saltarem para outros quadrantes da sociedade. Com grande parte da população a viver directamente ou indirectamente do mar, as preocupações adensam-se entre caxineiros, ao mesmo tempo que a ansiedade cresce.

Nesta quarta-feira, em reunião na sede da associação de produtores Propeixe, em Matosinhos, o governo garantiu compensações aos armadores forçados a parar, enquanto se estudam formas de evitar, a seguir, a paralisação do sector, com medidas que possibilitem aos membros das tripulações considerados de risco manter-se em isolamento em terra. No dia seguinte, a autarquia de Vila do Conde anunciou a cedência de alojamentos para esse efeito.

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Apesar de activada a resposta de urgência e dos cuidados que pescadores e armadores dizem ter – como confirma Antero Castro e o fez também Eduardo Pinheiro, secretário de Estado da Mobilidade e coordenador do combate à pandemia no Norte, presente na reunião de quarta-feira –, em Caxinas teme-se pelo futuro mais próximo, mas também pela saúde e segurança de familiares que todos os dias seguem para o mar.

Medo prejudica negócio

No mercado municipal, Maria das Dores Arteiro, atrás de uma das bancas de venda de peixe há 35 anos, está à espera de ver o fundo dos cabazes expostos à sua frente, mas começa a ser mais difícil, a menos de duas horas do encerramento do espaço. “O peixe que aqui botei de manhã é o que aqui está”, atira. O negócio está longe do ideal e culpa disso acredita ser “o medo” que se instalou na comunidade depois de terem sido divulgados os primeiros casos nas embarcações tripuladas por gente da terra e da vizinha Póvoa de Varzim. Também acredita que para isso contribuiu a subida de casos de covid-19 em Vila do Conde. E de pouco lhe adianta, perante a falta de clientes, o cumprimento zeloso das recomendações de segurança e higiene. “Passamos o dia com as mãos debaixo de água”, afirma.

A falta de clientes sente-se no bolso, mas o receio pelo bem-estar dos mais próximos sente-se no coração. Dores tem um filho que faz do mar a sua vida, e que é motivo de noites mal dormidas. “Agora também fico preocupada que ele fique doente”, desabafa.

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Sobreviver ao mar e à covid

No passeio marítimo frente a igreja paroquial do Nosso Senhor dos Navegantes, enquanto muitos se passeiam pela marginal, há quem discuta o tema sentado no muro de separação para a praia. Um deles é José Pereira, pescador reformado, depois de 44 anos de actividade. Aos 70 anos recorda alguns sustos pelos quais passou no mar, onde, “mais do que uma vez”, os barcos onde seguia naufragaram. Mas enfatiza o susto mais recente pelo qual passou em terra firme. “Fui um dos primeiros infectados, ainda em Março. Estive 11 dias em coma no hospital Pedro Hispano”, conta.

Fez frente a covid e ganhou a batalha. Agora está “rijo”, mas preocupado com o sector depois da paragem forçada das quatro traineiras. “Se o sector parar é um desastre para as Caxinas”, afirma. Para contornar a situação, defende a “testagem mais regular” para os colegas ainda no activo.

Também reformado, numa zona mais anterior, mas próxima da praia, no café La Bamba, frequentado por muitos trabalhadores do mar, Mário Cruz, 62 anos, agora a viver na Póvoa de Varzim, acredita que sem apoios estatais torna-se mais difícil enfrentar este período. Por outro lado, desconfia da “boa vontade dos governantes”. “Tenho um irmão que ainda está à espera de receber as compensações da paragem de dois meses”, atira, sublinhando tornar-se inviável subsistir desta forma quando “se ganha dia-a-dia” e se trabalha “apenas num curto período do ano”.

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Maria das Dores Arteiro tem um filho no mar, e preocupações em terra

Um problema para toda a gente

À espera de compensações está também Bruno Lima, proprietário do café Maré Alta, em cuja esplanada estão quase uma dezena de pescadores no activo e reformados. Depois de obrigado a encerrar o estabelecimento durante o período de estado de emergência, agora teme mais prejuízo por ter como grande parte dos clientes “gente do mar”. “Se o pessoal não trabalhar não recebem eles nem recebem os outros negócios. Se mais barcos pararem torna-se num problema para toda a gente”, diz.

Sentado à esplanada do Maré Alta está Antero Castro. Antes de jantar, para depois seguir para Matosinhos, de onde parte o barco onde trabalha, juntou-se a um grupo de colegas. “É a única coisa que tenho feito sem ser trabalhar. Praticamente só tenho estado com alguns amigos, mas com distância”, assegura.

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Pouco falta para voltar numa rotina de trabalho que acaba e começa no mesmo dia. Perguntamos que alternativas terá, se for sujeito a uma paragem obrigatória. A resposta é incisiva: “Tenho que trabalhar”. Insistimos, mas a resposta não é diferente: “Tenho que trabalhar”, repete.

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