Estado não pode fixar, mas “pode regular preço da madeira” paga aos produtores, diz presidente da ANEFA

Pedro Serra Ramos, presidente da associação nacional que representa duas mil empresas dos sectores florestal, agrícola e ambiental, lamenta o sistema de formação de preço da madeira, apontando o dedo tanto ao sector como ao Governo.

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Nelson Garrido

“O investimento na floresta não é atractivo.” A Associação Nacional de Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente (ANEFA), que representa cerca de duas mil empresas e 10 a 15 mil postos de trabalho, diz que “os custos operacionais aumentaram muito” e que “não podemos ter um sector que paga tanto por madeira para triturar como por madeira boa para fins nobres”. O presidente da associação, Pedro Serra Ramos, avisa: “O Estado não pode impor preços, mas pode regular”. E deve impedir a venda “abaixo do preço de custo”.

Como olha hoje para a floresta? É um sector atractivo?
Os custos operacionais aumentaram muito. Aquilo que há de inovação tecnológica não compensa em termos de produtividade o aumento desses custos operacionais e, portanto, neste momento, o investimento não é atractivo para o produtor florestal. Isso faz que o produtor florestal tenha abandonado grande parte dos terrenos. Essa é a principal pedra no sapato no sector florestal: a falta de rentabilidade a montante, na produção. Não conseguimos, de facto, ter um preço que permita à floresta ser rentável.

Agora, o produtor florestal também tem de começar a olhar para a floresta de outra maneira. Os modelos de exploração têm de passar a ser diferentes, porque ainda há muito produtor a seguir modelos antigos e tem de começar a tirar partido de outras coisas que a floresta possa dar, nomeadamente os serviços do ecossistema e que, com esta questão do Green Deal [Pacto Ecológico Europeu], podem assumir um papel preponderante.

Diz que o problema da floresta está sobretudo a montante, na rentabilidade que os produtores florestais retiram, ou não, das explorações florestais. O que falta, então, fazer?
Bem, nós não podemos ter um sector que paga tanto por madeira para triturar como por madeira boa que acaba por ser utilizada para fins nobres.

Por outro lado, temos uma indústria das pellets, que é madeira para queimar, que paga mais pela madeira do que paga a indústria [pela madeira] para triturar. Portanto, a gente chega a uma situação em que diz: “Se estão a pagar mais pela madeira para queimar, não precisamos de produzir boa madeira. Nem sequer nos precisamos de preocupar com ela, porque aquilo que as matas derem é aquilo que a gente vende.” E este tipo de funcionamento leva a que as pessoas não pensem em investir no sector florestal.

Ainda por cima, feitas as contas à produtividade do eucalipto, por exemplo, possivelmente a única vantagem que a cultura do eucalipto tem é que, se arder, não é preciso voltar a plantar. Ela regenera automaticamente. Porque, ao preço a que é paga a madeira, não tem qualquer outra vantagem. Portanto, neste momento, a única vantagem que existe para o produtor é que, se aquilo arder, não precisa de se preocupar. Já no caso do pinho, arde uma vez, arde a segunda, e acabou. A regeneração natural já não se faz.

No caso do sobreiro ainda é pior, porque durante um período não se pode fazer nada e temos de esperar para ver se as árvores recuperam. E, se o fogo tiver sido intenso, aquela primeira tirada de cortiça tem pouco aproveitamento.

Portanto, nós acabamos por estar de certa forma enclausurados num sistema em que quem se serve da matéria-prima não paga o real valor que ela custa a produzir. E, enquanto estivermos nesse sistema, o produtor, que também sabe fazer contas, chega ao fim e vê que não está a ganhar dinheiro.

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“Estamos a falar de um mercado ibérico governado por duas empresas, no caso do eucalipto: o grupo Altri e o grupo Navigator. E é muito complicado sabermos que o dinheiro não chega para pagar ao produtor e ouvirmos estes grupos todos os anos a dizerem que têm lucros fantásticos. Tem de haver uma preocupação com a fonte da matéria-prima.” Nelson Garrido

Como se dá a volta a essa situação?
Aumentando o preço.

Mas o Estado não pode impor preços.
O Estado não pode impor preços, mas pode regular. O Estado pode dizer, “Não se pode estar a vender madeira abaixo do preço de custo”. Portanto, se essa madeira custa X a produzir, não se pode vender abaixo do custo. E quem impõe os preços de tabela à porta da fábrica não pode impor preços abaixo dos preços de custo. Porque quem impõe sabe exactamente quanto custa produzir essa madeira. É aqui que o Estado tem de ter um papel regulador. É por isso que existe a PARCA [Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agroalimentar], que devia regular estas coisas. E, paralelamente, existe uma coisa que se chama CAOF - Comissão de Acompanhamento para as Operações Florestais [criada através do Despacho n.º 24711/2000, de 2 de dezembro], que não reúne desde 2016…

E porquê?
Porque o Governo não deixa.

Não deixa?
Alguém não deixa. As entidades eram todas chamadas para reunir para estabelecer os preços de referência para as diferentes operações [do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, da ANEFA, da Federação Nacional das Cooperativas de Produtores Florestais, da Associação Florestal de Portugal, da União da Floresta Mediterrânica e da Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, que assegura a coordenação]. E desde 2016 que [a comissão] não reúne.

Quem tem o poder de convocar a CAOF?
Uma instituição do Estado, a DGAV [Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária]. Mas desde 2016 que não convoca ninguém e, portanto, estamos a guiar-nos pelos custos de referência das operações de 2016.

Mas, mesmo utilizando esses custos, é fácil ver, somando os custos, que o dinheiro pago pela madeira não chega. Até porque, em 2016, se estabeleceram pela primeira vez os custos de referência para o corte, a rechega e o transporte da madeira. E é só somar os custos de plantação, de manutenção e de transporte e comparar isso com a receita que se recebe e rapidamente se chega à conclusão de que o dinheiro não chega. Essas tabelas são públicas e é fácil aos produtores agarrar nessas tabelas, fazer contas antes de fazer o investimento e ver que o dinheiro não chega. Ora, se o dinheiro não chega, não vão investir. Vão deixar como está.

E é esta a floresta que estamos a caminhar para ter. Se somarmos a isso aquilo que está a ser imposto da limpeza anual das faixas que implica, em determinadas zonas, a remoção e consequente redução do número de árvores, vamos chegar à conclusão que, de facto, o dinheiro não chega. Portanto, ou arranjamos modelos de exploração muito mais atractivos para o proprietário – o que é possível – ou simplesmente a solução é aumentar o preço dos produtos florestais, que é aquilo que o Governo já devia ter obrigado que fosse realizado. E só o Governo tem esse poder. Nós não temos. O mercado não tem esse poder, por uma razão simples: podem dizer que é o mercado a funcionar, só que estamos a falar de um mercado ibérico governado por duas empresas, no caso do eucalipto.

Que são quais?
O grupo Altri e o grupo Navigator. E é muito complicado nós sabermos que o dinheiro não chega para pagar ao produtor e ouvirmos estes grupos todos os anos a dizer que têm lucros fantásticos. Nós entendemos que as empresas têm de ser rentáveis e produzir lucros para os accionistas, mas tem de haver uma preocupação com a fonte da matéria-prima. E essa preocupação não existe hoje. E não é só no sector da celulose. É no sector da celulose, no do pinho, no da cortiça. Em todos eles não há uma preocupação.

O Governo aprovou um pacote legislativo para a floresta a 21 de Maio. A ANEFA queixou-se na altura, através de comunicado, dizendo que não foi ouvida na preparação desses diplomas. Foi assim?
Nem a ANEFA, nem nenhum outro parceiro, de que nós tenhamos conhecimento. De facto, foi assim. Aliás, começa a ser uma característica deste Governo: ouvir os agentes do sector já na fase de consulta pública. E na fase de consulta pública não é para ouvir os agentes do sector, é para ouvir a sociedade civil sobre aquilo que têm a dizer, com menos conhecimento de causa sobre aquilo que se passa no sector. E isto começa a ser uma linha de funcionamento deste governo, da qual não entendemos a razão. Não percebemos porque ninguém é ouvido. Somos surpreendidos, ou não, porque algumas coisas já tínhamos ideia de que poderiam sair, mas, de facto, não entendemos o que se espera ganhar a governar desta forma.

O PÚBLICO confrontou à data o secretário de Estado das Florestas, João Catarino, sobre a alegada falta de consulta aos agentes do sector, mas este rebateu dizendo que se tratou de “um trabalho intenso, complexo, muito maturado e discutido”.
Não, não é verdade. Em sede de consulta pública, houve, de facto, a possibilidade de alguma pronúncia sobre isso. Em relação às medidas que saíram, não. Não houve qualquer auscultação.

Foram aprovados, ao todo, 10 diplomas. Alguns ainda não estão publicados. Daquilo que já se conhece, parece-lhe que este pacote legislativo vem numa boa direcção?
Não. [pausa] Estou a ver se me lembro de alguma medida que venha numa boa direcção. O pacote legislativo acaba por vir numa direcção, por um lado, inesperada e, por outro, na direcção daquilo que é chamado o ordenamento da paisagem. Ou seja, envolve muito mais uma componente ambiental do que propriamente uma componente florestal. E isso deixa-nos, de alguma forma, preocupados, porque embora se entenda, face ao Green Deal, que a floresta assuma – e já devia ter assumido há mais tempo – um papel de importante enquanto sumidouro de carbono, parece-nos que estamos a caminhar num sentido de estar continuamente a elaborar planos que depois não têm consequência na prática.

Primeiro fizeram-se os PROF [Programas Regionais de Ordenamento Florestal] e ainda os PROF não estão integrados nos PDM [Planos Directores Municipais] e já estão a propor planos de ordenamento da paisagem. E, a determinada altura, com tanto plano, alguma coisa vai ficar por fazer. E o que vai ficar por fazer é a floresta. Também ficamos muito apreensivos quando ouvimos que há muitos projectos que já estão em andamento e nós desconhecemos completamente o que está em andamento. Falava-se há tempos em 160 projectos já em marcha e nós desconhecemos onde estão a ser realizados. Há qualquer coisa que nos está a passar ao lado. E isso é lamentável quando nós representamos toda a fileira dos prestadores de serviço ao sector e somos a única entidade que os representa em Portugal e que negoceia o Contrato Colectivo de Trabalho com os sindicatos. De repente, as coisas aparecem sem que nós tenhamos uma palavra sobre elas.

Que representatividade tem a ANEFA?
A nível nacional, é a única associação que representa os prestadores de serviços. Em termos de representatividade, estamos a falar de cerca de duas mil empresas. Portanto, ficamos um bocado apreensivos quando olhamos para aquilo que sai sem termos sido ouvidos. Mas, pronto, é uma estratégia que tem sido seguida e nós teremos de aprender a viver com isso.

Ainda sobre os diplomas aprovados pelo Governo a 21 de Maio, falemos do cadastro. Porque é que o cadastro não avança?
Porque alguém não quer.

E quem não quer?
Não sei. Não consigo perceber. A área do cadastro até me é muito querida, é uma área que trabalho bastante. O cadastro só não se faz porque não querem. Ao princípio havia uma guerra de interesses institucionais entre, talvez, o Instituto Geográfico e outras entidades que necessitavam do cadastro. O Instituto Geográfico entendia que o cadastro devia ser feito de uma forma mais rigorosa, um rigor se calhar até excessivo, mas de uma forma definitiva, o que implicava um custo demasiado alto que os sucessivos governantes nunca quiseram assumir.

Mas, de facto, há várias maneiras de fazer o cadastro, porque a informação que serve para controlar os subsídios tem de ser fidedigna para fazer um cadastro. Portanto, a questão de elaborar um cadastro rústico não pode ser assim tão complicada. Não há necessidade de assumir um cadastro como algo que tem de ser rígido; o cadastro tem de ser assumido como instrumento de planeamento que é, e ser trabalhado dessa forma, ou seja, utilizar a informação que existe – e existe muita informação – para elaborar um cadastro que depois vai ser melhorado ao longo do tempo. O custo não é nada daquilo que seria fazer um cadastro rigoroso como antigamente. Portanto, não se entende porque é que, por exemplo, no último Governo, em 2018 a Assembleia da República não quis aprovar a elaboração do cadastro para todo o país e só aprovou para meia dúzia de concelhos-piloto. 

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“As autarquias só teriam a ganhar com o cadastro. Hoje os terrenos rústicos são tributados bastante por baixo. No dia em que se souber exactamente o cadastro dos terrenos, tudo isso vai mudar. E cria uma oportunidade para os municípios e, até, para o Governo central.” nelson garrido

Mas quem não quer que o cadastro avance?
Não sei. É uma pergunta que terá de fazer aos deputados desta nação. O que pergunto é: como se pode gerir algo que não se conhece? É a mesma história do inventário florestal nacional. Como podem exigir uma gestão profissional de algo que não se conhece? Acabam por ser as empresas que, antes de fazer qualquer projecto, têm de fazer o cadastro da propriedade para o proprietário saiba exactamente aquilo que lá está para depois fazerem uma proposta ou elaborarem ou executarem um projecto.

Não é que isso tenha problema. Não é à toa que Portugal é o país da Europa onde a tecnologia GPS começou a ser utilizada mais cedo, porque nós não tínhamos cartografia e utilizámos o GPS para a elaborar, quando o GPS era uma tecnologia que os americanos usavam nas guerras. Estamos a falar de 1991, 1992. E isso permitiu um desenvolvimento do ponto de vista tecnológico do sector florestal que hoje dá cartas por esse mundo fora.

Agora, porque é que o Governo não aproveita a muita informação que já existe e faz um cadastro simplificado? É algo a que os deputados terão de responder. Foram eles que chumbaram o projecto de cadastro simplificado.

Que responsabilidade têm aqui as autarquias?
As autarquias só teriam a ganhar. Repare: no momento em que se fizer o cadastro, toda tributação que é feita sobre os terrenos vai ser alterada. Hoje os terrenos rústicos são tributados bastante por baixo. No dia em que se souber exactamente o cadastro dos terrenos, tudo isso vai mudar. E tudo isso cria uma oportunidade para os municípios e, até, para o Governo central.

Em termos de receita?
Sim, em termos de receita. Portanto, não vemos que seja por aí…

Os municípios têm alguma autonomia para procederem à elaboração do cadastro?
Não. Quando muito poderiam contratar [a realização desse serviço], mas, não recebendo dinheiro, duvido que os municípios enveredassem por essa situação. Mas, lá está, [a acontecer] será sempre uma situação de subcontratação. Implica custos e isso implica Governo central. Não penso que os municípios agarrem nesse assunto sem que haja uma compensação por parte do Governo central.

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