Surto de 30 artistas infectados no Ballet Mariinsky, da Rússia, põe em causa desconfinamento da dança

Histórica companhia de São Petersburgo regressara às récitas no início de Agosto, sobretudo com solos e duetos, mas é agora forçada a suspender apresentações e ensaios por tempo indefinido. No resto da Europa, colectivos que estavam a olhar para a retoma do Mariinsky como um exemplo começam a recear.

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Récita de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, interpretada pelo Ballet Mariinsky em 2015 na BAM Howard Gilman Opera House, em Brooklyn Jack Vartoogian/Getty Images

Cerca de 30 artistas do Ballet Mariinsky, a companhia residente de ballet clássico do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, acusaram nas últimas duas semanas testes positivos à covid-19, reportou esta segunda-feira a agência de notícias russa Interfax. De acordo com este órgão de comunicação, três dos infectados deram entrada no hospital com sintomas “leves” e os restantes integrantes do corpo de bailarinos, composto no total por 300 pessoas, estarão actualmente em isolamento domiciliário preventivo.

Segundo a Interfax, as preocupações dentro do grupo de trabalho começaram a 8 de Agosto, dia a partir do qual vários intérpretes foram autorizados a ficar em casa devido a queixas relativas ao seu estado de saúde. O Teatro Mariinsky começou por adiar as récitas que estavam agendadas para o período compreendido entre os dias 13 e 16, mas uma porta-voz da companhia já anunciou que a inactividade vai prolongar-se por tempo indefinido, num comunicado citado pelo New York Times onde assinala que todos os espectáculos e ensaios do Ballet Mariinsky estão suspensos.

Cautelas no palco

O contratempo surge depois de um início de Agosto durante o qual a companhia regressou cautelosamente ao palco, apresentando no histórico salão de São Petersburgo vários solos e duetos interpretados por artistas com testes negativos ao novo coronavírus. Xander Parish, bailarino britânico e um dos solistas do Ballet Mariinsky, conta ao New York Times que a equipa e os responsáveis pelo teatro “fizeram de tudo para manter a segurança”, salientando que a situação escalou aos poucos. “Começou há uma semana com um intérprete que ficou com febre. Depois foi mais um e depois foi mais um e depois pensámos: ‘Oh, não.’”

O Ballet Mariinsky — cujos membros ficarão em quarentena até que possam ser testados pelas autoridades de saúde — não é, de resto, o primeiro colectivo artístico na Rússia a ser atingido pela pandemia. Makhar Vaziev, director do moscovita Bolshoi Ballet — uma das mais antigas companhias de ballet do mundo, fundada em 1776 — diz ao New York Times que uma bailarina do grupo também contraiu a doença no início de Agosto. Assim que soube estar perante um caso de infecção e para evitar um possível surto, o responsável mandou para casa 54 pessoas com quem a artista havia interagido em aulas ou ensaios. Mais tarde, todos os testes à covid-19 deram resultados negativos. “Está tudo bem, graças a Deus”, sublinha.

O Bolshoi, que faz planos de regressar aos palcos apenas a 10 de Setembro, está agora a testar os seus bailarinos semanalmente — e a recomendar que não deixem de utilizar a máscara protectora na rua. Christiane Theobald, directora do Staatsballett Berlin, companhia fundada na capital da Alemanha em 2004, diz ao New York Times temer que a política de testes semanais “não seja suficiente”, frisando, no entanto, que o Staatsballett não tem os meios necessários para testar os seus intérpretes todos os dias.

A vontade de “pisar no acelerador” e o alerta do historial de contágios

Theobald está neste momento a ultimar os preparativos para uma gala que decorrerá daqui a uma semana, no dia 27. Será uma récita forçosamente adaptada aos constrangimentos levantados pelo novo coronavírus: em palco, os holofotes não recairão sobre mais do que seis bailarinos ao mesmo tempo e os intérpretes terão sempre que manter uma distância de pelo menos três metros. A criadora diz-se, ainda assim, preocupada com aquilo que pode significar o surto do Ballet Mariinsky, que até então estava a ser para o Staatsballett Berlin um exemplo de como fazer reerguer a dança no meio da crise pandémica. “Estávamos todos cheios de esperança e esta é uma situação muito assustadora”, partilha com o New York Times.

O bailarino Xander Parish recorda que, apesar da preenchida agenda da primeira quinzena de Agosto, o desconfinamento do Ballet Mariinsky foi muito mais lento. O regresso aos ensaios começou a conta-gotas no fim de Maio, inicialmente apenas com três intérpretes, um professor e um pianista. “Foi uma sensação incrível poder mexer-me de novo”, revela.

As medidas de segurança implementadas faziam com que o artista se sentisse especialmente confortável. As salas eram desinfectadas entre aulas, a temperatura corporal dos bailarinos era medida à entrada do Teatro Mariinsky e a máscara só saía do rosto no espaço de ensaios. Foi o sucesso das primeiras galas, com não mais do que oito pares na equipa de 300 pessoas, que fez com que a companhia sentisse vontade de “pisar no acelerador”. “E agora aconteceu isto”, lamenta. “Demorou o quê, duas semanas e meia para descambar?”

Este caso surge quase meio ano após um episódio de contágio que infectou 102 artistas do Amsterdam Mixed Choir, dias depois de uma apresentação na holandesa Sala de Concertos Real, a 8 de Março. O surto levou à morte de um corista de 78 anos e alguns dos cantores com sintomas mais graves tiveram de dar entrada nos cuidados intensivos.

Não foi o único coro a ter de medir forças com a pandemia: também nesse mês, vários intervenientes do norte-americano Skagit Valley Chorale, baseado em Washington, do germânico Berlin Cathedral Choir e do britânico Voices of Yorkshire também acusaram testes positivos à covid-19 depois de ensaios. Ao todo, foram diagnosticados com o novo coronavírus 45 membros do Skagit Valley Chorale, sendo que três deles foram hospitalizados e dois morreram.

Em Portugal, é com a dança que as salas de espectáculos do Rivoli, um dos pólos do Teatro Municipal do Porto, celebrarão a rentrée. O fim de Outubro coincidirá com o arranque de um ciclo dedicado à premiada coreógrafa Marlene Monteiro Freitas, que em 2018 venceu o Leão de Prata da Bienal de Veneza, e o mês de Novembro será marcado por um programa comemorativo do centenário de Merce Cunningham.

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