Ordem dos Médicos critica postura “inaceitável” da ARS do Alentejo

Em comunicado a Ordem dos Médicos também não deixa passar em claro a actuação das ministras do Trabaho e da Saúde e o próprio primeiro-ministro no caso do surto do Lar de Reguengos de Monsaraz.

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LUSA/NUNO VEIGA

A Ordem dos Médicos (OM) responsabilizou esta quarta-feira o presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, José Robalo, pelos 162 casos de covid-19 detectados no lar de Reguengos de Monsaraz e criticou o governo pela gestão da situação.

Em comunicado, o bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, considerou "inaceitável” o sucedido na localidade alentejana, defendendo que a pronúncia da ARS do Alentejo sobre o relatório da comissão de inquérito da Ordem acerca do Lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS) — conhecido em 6 de Agosto e que apontou para o incumprimento das orientações da Direcção-Geral da Saúde — não contestou as conclusões da auditoria.

A OM reiterou “as precárias condições do lar" e a insuficiência de recursos humanos, alegando ainda que “a definição de circuitos de limpos e sujos foi feita apenas nove dias após o primeiro caso confirmado”, que “o rastreio demorou cerca de três dias” e que “a decisão de transferir todos os infectados para um “alojamento sanitário” no pavilhão só ocorreu mais de duas semanas depois do início do surto”, quando já existiam oito mortos e 138 casos.

“A postura de negação e de desresponsabilização, associada à soberba e arrogância, por parte do Dr. José Robalo, é técnica e humanamente inaceitável, preferindo atacar a forma e os autores da auditoria, em detrimento de aproveitar o trabalho e as conclusões para que Reguengos não se repita”, pode ler-se na nota de imprensa divulgada, que acusa ainda José Robalo de violar “a lei em vigor, as regras éticas e deontológicas e os direitos humanos”.

Em declarações à RTP, o presidente da ARS do Alentejo confirmou a informação constante no relatório da Ordem dos Médicos de que os clínicos teriam sido ameaçados com um processo disciplinar por se recusarem a trabalhar no lar invocando falta de condições.

Miguel Guimarães e o presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem, Alexandre Lourenço, que assinam o documento, estendem também as críticas ao governo, nomeadamente à ministra do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e à titular da pasta da Saúde, Marta Temido.

“A dimensão da insensibilidade e da incapacidade em perceber o sucedido, demonstrada pela Sr.ª Ministra do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social, é claramente percebida quando o Sr. primeiro-ministro sente a necessidade de vir a terreiro em sua defesa. A dimensão da ausência de qualquer comentário da Sr.ª Ministra da Saúde sobre o tema da dimensão clínica na actividade dos lares é igualmente de realçar”, refere o comunicado.

A Ordem dos Médicos acusa também António Costa de “fuga” a este caso, com um ataque “por demais inaceitável” à classe médica.

Em declarações à TSF, Miguel Guimarães acusou o primeiro-ministro de populismo e avisou que as generalizações que fez à classe médica podem causar problemas.

“Fazer uma generalização como o senhor primeiro-ministro fez a todos os médicos é uma situação que pode gerar conflitos, uma situação potencialmente perigosa, uma situação populista que pode ter efeitos perversos. Espero que não tenha, e tudo iremos fazer para que isso não aconteça. Mas se me perguntar se os médicos, de uma forma geral, ficaram contentes? Não, recebi centenas de mensagens por causa das palavras do primeiro-ministro. Claro que são centenas de médicos, mas centenas de médicos lidam com milhares de doentes. E os doentes precisam dos médicos. E os médicos querem ajudar os doentes”, disse o bastonário, acrescentando que António Costa só cometeu um erro nas declarações que fez: utilizou o plural.

“Devia ter dito que isto é da responsabilidade de um médico, e o médico tem nome, chama-se doutor José Robalo e é presidente da ARS do Alentejo”, esclareceu Miguel Guimarães.

Entretanto, a auditoria da Ordem dos Médicos ao lar de Reguengos de Monsaraz foi criticada pelo presidente das Misericórdias, Manuel Lemos, que defendeu que a autoridade para avançar com um processo desta natureza é da competência exclusiva do governo.

Médicos de saúde pública reconhecem resultados clínicos “graves” apesar da contenção da transmissão

A Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP) diz que, “apesar da contenção da transmissão”, se reconhecem “erros clínicos graves” em Reguengos de Monsaraz, sendo por isso necessário o “apuramento de eventuais responsabilidades”. Num comunicado enviado esta quarta-feira, a ANMSP considera ser “fundamental” a realização de uma avaliação “exaustiva” dos factos, com base nas informações tornadas públicas sobre a situação no lar.

Reforçando o apoio ao trabalho realizado pelos médicos de saúde pública e autoridades de saúde “durante toda a pandemia”, a ANMSP considera que, apesar do sucesso contenção da transmissão conseguida através da “acção rápida” dos médicos de saúde pública no de rastreio da infecção em residentes e funcionários do lar, “reconhecem-se resultados clínicos graves”.

“Será necessário fazer uma clara distinção daquilo que são as responsabilidades clínicas e o trabalho e as competências dos MSP [médicos de saúde pública]. Não cabe aos MSP a realização da avaliação clínica a doentes ou ao seu seguimento. Neste caso concreto, coube a sinalização da situação às unidades clínicas, de forma atempada, para uma avaliação clínica exaustiva”, pode ler-se no comunicado, acrescentando ainda que aos médicos de saúde pública “cabe proteger a saúde da população e, em concreto na pandemia de covid-19, cabe a realização da vigilância epidemiológica, do rastreio de contactos e da implementação de medidas de controlo.”

A ANMSP criticou também o facto de os médicos de saúde pública não serem ouvidos, em particular “os que estiveram directamente envolvidos na situação”, bem como as limitações à comunicação directa das autoridades de saúde locais às populações e aos órgãos de comunicação social.

“Temos assistido a um desfilar de opiniões e tomadas de posição por diversas entidades e indivíduos. Mas não têm sido ouvidos os MSP, designadamente os que estiveram directamente envolvidos nesta situação. A existência de predisposições que limitam a comunicação das autoridades de saúde locais directamente com as populações e com os órgãos de comunicação social, representa uma enorme limitação à sua capacidade de intervenção, pois é-nos claro que a Comunicação do Risco é também parte da Gestão do Risco.”

No comunicado, a associação aproveita também para reforçar a necessidade de contratar profissionais de saúde para preparar a resposta a um eventual agravar da situação epidemiológica no país, uma vez que a “manutenção da situação actual (...) coloca em causa a supressão da transmissão”. A ANMSP reconhece também que “o reforço da proteção dos grupos vulneráveis é absolutamente prioritário para uma gestão apropriada da pandemia”. “Isso passa por preparar, antecipadamente, todos os ERPI [estruturas residenciais para idosos] para lidarem com casos de covid-19”.

O surto de Reguengos de Monsaraz, detectado em 18 de Junho, provocou 162 casos de infecção, a maior parte no lar (80 utentes e 26 profissionais), mas também 56 pessoas da comunidade, tendo morrido 18 pessoas (16 utentes e uma funcionária do lar e um homem da comunidade). O caso está a ser investigado pelo Ministério Público.

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