Relações entre portugueses e moçambicanos em Maputo – uma visão de uma outsider

Nos últimos anos, pesquisei etnograficamente as relações entre portugueses e moçambicanos através de várias entrevistas, e uma das minhas conclusões é que elas se desenrolam de maneira bastante paradoxal.

Como todos sabemos, durante a última década houve uma emigração maciça de Portugal para as ex-colónias na África Subsaariana. A maioria partiu para Angola, mas, por razões como laços familiares históricos e imagens negativas da vida em Angola, um número substancial escolheu Moçambique. As estatísticas sobre os portugueses em Moçambique não são fiáveis, mas, em 2015, o cônsul geral estimou que 25.000 portugueses viviam no país. Nos últimos anos, pesquisei etnograficamente as relações entre portugueses e moçambicanos através de várias entrevistas, e uma das minhas conclusões é que elas se desenrolam de maneira bastante paradoxal. Apesar de um evidente sentido de familiaridade, ambas as partes demonstram uma clara falta de conhecimento concreto sobre as experiências da vida quotidiana uma da outra. Há uma tendência para criar imagens estereotipadas uns dos outros, não existe um diálogo mútuo e aberto, e há muitas queixas. Ambas as partes afirmam conhecerem-se bem, no entanto estão separadas por uma linha que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos descreve como “abissal”, ou seja, a linha entre o ex-colonizado e o ex-colonizador.

Mas, primeiro, uma reflexão pessoal: sei que sou reconhecidamente uma outsider. Eu sou sueca, portanto sou vista tanto por portugueses e moçambicanos como “outro tipo de europeu”, alguém que não conhece os complexos emaranhados históricos que caracterizam o mundo lusófono pós-colonial. Até certo ponto, isso é verdade. Como professora universitária de antropologia, sou a primeira a admitir que somos moldados pela nossa formação cultural. No entanto, neste nosso mundo globalizante, precisamos mais do que nunca de comunicar através de todos os tipos de supostas fronteiras. É por isso que me atrevo a oferecer uma perspetiva sobre o mundo lusófono a um público português. Faço-o baseando-me em vários anos de pesquisa na África lusófona, que em outras ocasiões me levaram a Angola e Cabo Verde. No meu último projeto de investigação, entrevistei moçambicanos e portugueses em Maputo sobre as suas relações nos locais de trabalho.

Uma coisa que me impressionou foi ver que os portugueses frequentemente se relacionavam com os moçambicanos em tanto que seus subordinados. A relação hierárquica foi substanciada por continuidades coloniais que se transformaram em diferentes posições no mercado de trabalho. Muitos portugueses abriram pequenas empresas e contrataram funcionários moçambicanos. Isto fez com que inicialmente muitos moçambicanos hesitassem em falar comigo, por temerem que eu reportasse as nossas conversas ao seu patrão. No entanto, assim que garantia a confidencialidade, foi como abrir uma comporta, e os meus interlocutores falaram durante horas sobre as suas experiências relativamente ao antigo “outro” colonial. Ao mesmo tempo, os portugueses que conheci estavam sempre prontos para falar sobre os seus funcionários moçambicanos. Muitos manifestavam a sua frustração e alguns apresentavam imagens bastante estereotipadas, justificadas como necessárias para poderem “lidar com os moçambicanos”. Frequentemente, aludiam ao nosso contexto europeu partilhado, dizendo algo como “sabe, se contratar uma pessoa na Europa para fazer determinado trabalho, aqui tem de contratar três”. Uma razão para isso foi, obviamente, os baixos salários que tornaram possível ter vários empregados. Numa lógica circular e tóxica, os empregadores tendiam a contratar vários empregados, pagando-lhes o mínimo possível e ao mesmo tempo esperando deles um mau desempenho profissional.

É certo que também havia elementos de familiaridade. Os empregadores portugueses gostavam de falar sobre funcionários que trabalhavam para eles há muitos anos e alguns apoiavam “quem precisasse” com dinheiro ou um “cabaz”. Na minha perspetiva, no entanto, isso criava uma dependência e incerteza por parte dos funcionários moçambicanos, tornando-os vulneráveis aos caprichos dos seus patrões/patronos portugueses.

Por outro lado, entre os moçambicanos, havia um sentimento generalizado de não serem reconhecidos, tanto como trabalhadores como seres humanos. No entanto, para minha surpresa inicial, as críticas mais comuns diziam respeito à linguagem utilizada pelos portugueses. Quando perguntava aos moçambicanos sobre as suas relações com os portugueses no local de trabalho, muitos moçambicanos referiam-se imediatamente a expressões ofensivas, incluindo palavrões. Alguns argumentaram que isso tinha a ver com ressentimento, que os portugueses estavam zangados e eram arrogantes porque foram forçados a deixar Moçambique, em 1975. Outros descreveram-no de forma estereotipada, como fazendo parte do caráter nacional português, “é assim que eles são”.

A meu ver, o uso de palavrões é um indicador da falta de um diálogo baseado no respeito. Certamente, haverá contextos onde a linguagem grosseira não é um problema, mas Maputo não é um deles. A falta de diálogo através dessa linha abissal implica que muitos portugueses não entendam o quanto os seus palavrões podem magoar as pessoas que encontram diariamente no trabalho. Os funcionários moçambicanos referiram repetidamente que trabalhavam sob stress provocado pelo medo de palavrões e insultos, e que isso os tornava menos comprometidos com o seu trabalho. Um dos entrevistados expressou que se “sentia despido” quando “ouvia essas palavras”. Muitos viam os palavrões não só como uma ofensa a si próprios enquanto indivíduos, mas também como uma violação da ordem social e religiosa. As “palavras pesadas” atingiam a sua forma de ser a nível existencial e ontológico.

No entanto, também havia sinais de mudança. Alguns empregados moçambicanos recusavam ouvir expressões insultuosas. Outros tentavam, subtilmente, confrontar os seus superiores portugueses acerca da sua linguagem rude. Descreveram que esperavam que o seu chefe “acalmasse” para depois explicar o quanto a linguagem grosseira os afetava. A meu ver, isto aponta para uma mudança pequena, mas evidente. Durante séculos, a retórica da missão civilizadora foi crucial para legitimar o colonialismo e o pós-colonialismo europeu. Neste caso, no entanto, os moçambicanos sentiram que eram responsáveis ​​por incutir maneiras novas e melhores entre os antigos colonizadores. A linguagem rude e a falta de maneiras dos portugueses conferiram aos empregadores moçambicanos um sentido de superioridade moral. Sem surpresa, esses sentimentos foram especialmente fortes quando se tratava de insultos racistas. No que diz respeito a este tipo de abuso, muitos moçambicanos demonstraram consciência dos seus direitos e da necessidade de mudança imediata. Sentiram que era chegada a hora de ensinar aos ex-colonizadores a importância da civilização.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção