Portugal chama, por si. Apague estas tochas

Acender tochas em frente a uma organização anti-racista é o derradeiro gesto de quem se identifica como inimigo da democracia e se assume como incendiário e racista.

Após outro episódio extremista, com uma parada de elementos de cara tapada e de tochas na mão, junto à sede do SOS Racismo, e de ameaças feitas a activistas e deputadas, é nosso dever continuar a exigir que este fogo seja combatido tal como todos os outros que nos ocupam no presente, porque ele está activo e a alastrar-se. Temos aqui mais uma oportunidade para nos unirmos como sociedade no combate ao racismo e ao extremismo de direita. Sem medo.

Chamou-se incendiário a quem alertou para o racismo em Portugal. Alertar é querer enfrentar o problema e resolvê-lo; é querer apagá-lo. Insinuou-se que debater o assunto poderia agravá-lo. Relativizou-se a sua dimensão. Tivemos de chegar a uma encenação “Hollywoodesca” para que fosse reconhecida a índole violenta e criminosa por detrás do fumo que vamos observando. O que lhes havemos de chamar? O que lhes havemos de fazer?

Quem ateia fogos é criminoso e/ou pirómano. O que mantém este assunto aceso são as demonstrações de racismo e são os racistas. Acender tochas em frente a uma organização anti-racista é o derradeiro gesto de quem se identifica como inimigo da democracia e se assume como incendiário e racista. O que temos a ponderar? Os agressores ou as vítimas?

Há prioridades a cada momento, mas a luta pela igualdade nunca pode ser secundarizada. Em tempos de crise, assegurar o tratamento igual é ainda mais essencial. E não podemos dissociar coisas essenciais. Todos os fogos são igualmente perigosos e continuar somente a ponderar é fazer perigar a nossa democracia. 

A perda de credibilidade da classe política e a sensação de distanciamento de quem se vê vítima de injustiça, têm contribuído para o extremar de posições a que temos assistido. Não falar dos problemas não os resolve. Falar “en passant” também não vai resolver. Temos sido brandos. Precisamos de coragem para enfrentar este medo.

A passada quinta-feira começou com declarações do Presidente da Assembleia da República, demonstrando a sua solidariedade para com as deputadas e activistas, que tinham sido alvo de ameaças à sua integridade física e também a sua preocupação em assegurar a integridade da nossa democracia. E esta não foi a primeira vez que manifestou a sua preocupação quanto a discursos de ódio.

Seguiram-se os partidos, com posições mais ou menos ajustadas às suas ideias, mas a tónica foi a de condenar este episódio. Foi um dia importante para ficarmos mais esclarecidos sobre quem defende a democracia, quem faz política, quem defende causas e quem é só incendiário e criminoso. O que podemos ler nas entrelinhas é relevante para sabermos o que podemos esperar dos nossos políticos no futuro. Neste momento, precisamos que o Presidente da República e o primeiro-ministro tomem posições convictas. 

O que o Presidente da República tem deixado transparecer tem sido silêncio ou relativização, passando uma ideia de que não reconhece o problema, de ter uma empatia menor e até de algum enfado, quando o assunto é racismo. Nesta quinta-feira, pouco depois de ter tomado conhecimento do mais recente episódio ao ler a carta aberta que várias organizações assinaram, abordou o assunto entre visitas a três hotéis em Lisboa, respondendo a várias perguntas colocadas por jornalistas, tendo relembrado o princípio da igualdade, remetido o assunto para o Ministério Público e pedido sensatez e inteligência para evitarmos escaladas e um clima emocional de clivagem social. Vindo do “Presidente dos Afectos”, fica a impressão de comentário de circunstância e alguma distância.

Será esta ponderação uma razão do problema, um sintoma ou um diagnóstico? Solução não é. Todos concordamos em não dispensar inteligência e também precisamos de união, é certo. E quando olhamos para o Presidente da República e para o primeiro-ministro de mãos dadas um com o outro, apagar fogos parece ser a razão anunciada da sua aliança. E não me vou alongar sobre jogos de poder ou eleitorais, mas posso concluir a metáfora: este fogo em particular está longe de ser apagado, porque tememos olhar de frente para ele.

Precisamos de responsáveis com o instinto, a coragem e a eficácia de um bombeiro, porque nenhum bom Soldado da Paz dorme descansado enquanto há fogo; sente-se ameaçado e só repousa depois de o saber bem apagado. Relembrar a Constituição não chega. Não tem chegado. O termo “tolerância zero”, também utilizado pelo Presidente, parece um título forte, mas não se tem traduzido em acções consentâneas. 

Também soa bem ouvir dizer que acções racistas contra deputados são “tão condenáveis” como contra qualquer outro cidadão. Contudo não ouvimos igual pronunciamento num passado recente. Precisamos mais do que reconhecimento constitucional ou solidariedade institucional, precisamos de demonstrações de empatia pelas pessoas que não vivem sob o princípio da igualdade.

Caros Presidente da República e primeiro-ministro, o país precisa de ver reconhecido o problema em vez da circunstância; da condenação inequívoca destes actos e da passagem de boas intenções a acções de quem quer apagar estas tochas, com a mesma urgência com que veste um colete em tempos de incêndio. Com Coragem. Com Amor.

Como cidadãos, cabe-nos não deixarmos a frustração, a doença e a desilusão com a classe política, serem factores de decisão no voto de cada um. Na dúvida, mais vale um voto em branco do que um voto no ódio. 

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