As feministas também choram

Pelo percurso de um museu, Yoko Ono vai-nos oferecendo momentos de introspecção, momentos de reparação, outros tantos de pura beleza.

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nelson garrido

Desconfinar em tempos de pandemia pode ser sinónimo de uma belíssima descoberta: a delícia de reencontrar as pequenas coisas do quotidiano que dávamos como garantidas, mas que, afinal, podem desaparecer num instante, num brevíssimo e implacável instante. Claro que todos pensamos nisto com mais ou menos frequência, mas não há imaginação que nos valha quando se trata de choques de realidade.

Deambular por uma cidade, a nossa ou outra qualquer, é sem dúvida uma dessas coisas que passou a fazer falta, sobretudo porque, tendo deixado de olhar os seus recantos, perdidos entre multidões atarefadas, tínhamos esquecido como a cidade é parte integrante do nosso corpo. Enfim, descobrimo-nos livres novamente na cidade, corpo com corpo e as (re)descobertas foram-se sucedendo. Até que de um daqueles placards que normalmente vomitam publicidade e informação municipal, surge um lampejo de inspiração no sentido mais literal do termo: com os olhos, foi o ar que durante meses rareou que subitamente voltou a sobejar. Coisa rara, coisa estranha. Olhando uma frase, preto sobre fundo branco, “Joy is Life”, temos vontade de sair da rua novamente e entrar no museu só para ter aquela sensação novamente.

Ali entradas, lembramo-nos de como de facto as mulheres são complicadas, e as feministas muito mais. Como Yoko Ono. Sob uma capa de aparente simplicidade, claro, e às vezes até de aparente inocência. Se na maior parte das cabeças, Ono vem ao lado de um escaravelho popular (sem ofensa, claro, porque as Boas Feministas apreciam todo o tipo de insectos), o facto é que vê-la ao deambular solitariamente através da sua obra é uma experiência marcante, muito além de qualquer ideia preconcebida.

Esquecidos os soundbytes, deixamo-nos entrar na doce estranheza de um livro que é poesia, pintura, música, para além de objecto rectangular constituído por folhas de papel encadernadas; agradecemos os inúmeros convites para participar na “obra aberta”, ou sempre inacabada, porque esta não é obra de um mestre, mas de uma mulher que sabe que o sentido de tudo está no outro, em despertar algo no outro, seja uma sensação de inclusão ou a certeza de um reconhecimento.

Considerações críticas à parte, vemos esta arte com um sentimento de olhar algo de renovado ou de renovador, pese embora o lapso temporal. Voltamos, pois, àquela sensação de reconhecimento perante algo ou alguém tão diferente de nós. Pelo percurso de um museu, Yoko Ono vai-nos oferecendo momentos de introspecção, momentos de reparação, outros tantos de pura beleza. Chama-nos para dentro de si, mostra-nos o espelho e convida-nos a ser parte daquilo, daquele todo. E então fazemos mesmo parte daquilo.

Chegadas ao fim do percurso, ficamos ali prostradas, ao lado delas, todas aquelas iguais a nós que responderam a apelo da artista e enviaram uma fotografia dos seus olhos para integrar a instalação, juntamente com a descrição de algum tipo de abuso ou discriminação baseado no género que tivessem sofrido (a artista chamou Arising a este apelo testemunhal). Deixamo-nos ficar ali, estarrecidas perante a coragem e perante o reconhecimento de que somos um mar, e não uma gota de água. Uma história e não uma palavra. Um coro e não uma voz. Um imenso tapete e não uma linha. Mais uma vez nos vemos concentradas naquilo que nos aproxima e não naquilo que nos distingue. Desta vez o que nos aproxima são lágrimas, porque sim, e lamento desiludi-las, as feministas também choram. 

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