Negar factos para evitar mudanças

As ameaças a que dirigentes associativos e políticos foram submetidas não podem ter lugar no Portugal democrático. Não admitir a sua gravidade é assumir o negacionismo crónico da extrema-direita e fechar os olhos à necessidade de mudança.

Foto
Unsplash

Negar factos é uma boa forma de escapar à culpa. De facto, torna-se inverosímil sermos acusados de algo quando não admitimos a sua ocorrência. É por isso que o negacionismo é perverso e obscenamente desresponsabilizador. Além disso, é uma forma eficaz de oposição à mudança, pois não admite a necessidade de alterações a uma realidade confirmada.

No livro Denialism: How Irrational Thinking Hinders Scientific Progress, Harms the Planet, and Threatens Our Lives, o jornalista da New Yorker Michael Specter define o negacionismo como algo que acontece quando, confrontado com o drama da mudança, um segmento da sociedade prefere voltar-se para uma mentira confortável, ao invés de enfrentar a realidade. O autor refere-se especificamente à descredibilização política da ciência e à forma como essa prática coloca em causa o bem-estar dos cidadãos. O livro foi escrito há mais de uma década mas continua actual, e a tese aplica-se perfeitamente a fenómenos sociais que estão a acontecer em Portugal.

Perante o apoio generalizado ao movimento Black Lives Matter, o partido do deputado único André Ventura saiu à rua para negar a causa defendida, alegando que “Portugal não é racista”. Já antes tinha dito na Assembleia da República que “o racismo estrutural é um fantasma que não existe em Portugal, é um fantasma que nos querem trazer para a discussão de temas ou para esconder outros”. Tudo isto numa altura em que o racismo é amplamente discutido a nível nacional e internacional, discussão que aliás tem como objectivo levar a cabo mudanças na sociedade (e sublinho aqui a ligação mencionada anteriormente entre negacionismo e oposição a mudanças).

Mais recentemente, Portugal viu uma assustadora manifestação (em frente à sede da SOS Racismo) que gerou pouco mais do que um encolher de ombros a nível nacional. Dias depois da acção que tinha elementos iconográficos muito semelhantes a grupos supremacistas brancos como Klu Klux Klan –, dirigentes da referida associação e deputados de esquerda foram ameaçados, numa carta que coloca em causa a segurança das suas famílias. Tudo porque pedem mudanças.

Perante esta situação o mesmo deputado único de extrema-direita diz no Twitter, e cito: “Todos os dias são feitas publicamente ameaças à minha vida ou de outros membros do Chega. Alguém ouviu alguma vez falar de racismo? Ou viu a indignação de Ferro Rodrigues? Mas eles precisam desta narrativa do racismo…”. 

Confrontado com pessoas que foram directamente ameaçadas numa carta que dá prazo para que abandonem o país –, o deputado prefere negar a gravidade da situação, tentando não apenas desvalorizar, mas descredibilizar todas as ameaças em causa. O argumento utilizado é precisamente a negação do racismo e da discriminação.

É conhecida e amplamente estudada a ligação entre negacionismo, extremismo, nacionalismo e, sim, nazismo. Isto porque negar problemas é negar as causas que lhe são intrínsecas e equivale a fingir argumentos para contrariar as necessidades de inclusão. As ameaças a que dirigentes associativos e políticos foram submetidas não podem ter lugar no Portugal democrático. Não admitir a sua gravidade é assumir o negacionismo crónico da extrema-direita e fechar os olhos à necessidade de mudança. O primeiro passo para solucionar problemas é encará-los de frente e aceitar que existem. Paremos de negar o evidente.

Sugerir correcção