A África construída pelo cinema

Beyoncé teria dito que pretendeu homenagear a cultura africana. Qual? Embora o continente não esteja culturalmente tão fragmentado como pretendem os identitários, não há uma cultura africana única, há pluralidade.

As visões de África criadas por Hollywood têm evoluído consoante as forças presentes no mercado. Primeiro lançaram as imagens dum tal Tarzan em paisagens exuberantes nas quais a presença de negros era coisa rara. Depois introduziram a rainha Cleópatra representada por Elizabeth Taylor no meio de faustosos ambientes que desencadearam uma persistente busca por reis e rainhas no continente africano. Assim, até filmes interessantes tiveram títulos como O Último Rei da Escócia para abordar a ditadura de Idi Amin no Uganda. Hotel Ruanda e Diamantes de Sangue foram honrosas exceções holiudianas.

Há cerca de uma década, as grandes produtoras constataram o aumento das classes médias negras nas Américas e em África, novo fator de  mercado e obtiveram enormes sucessos, como Pantera Negra, prevendo o mesmo para um filme que ainda pouca gente viu, devido a lançamento muito recente agravado pelas condições sanitárias, mas sobre o qual se estabeleceu — sobretudo nas Américas — feroz polémica: Black is King (Negro é Rei).

O título levanta problemas a quem tenha lutado ou continue a lutar contra as opressões e pobreza no continente africano, pois os protagonistas evoluem num ambiente de aurífera realeza e os títulos de rei e rainha são aplicações dos europeus às autoridades políticas que encontraram nos seus primeiros contactos com África subsaariana. Como demonstrou Patrício Batsikama num dos seus trabalhos sobre o Kongo (edição Mayamba, Luanda), o poder neste Estado pré-colonial não correspondia aos sistemas monárquicos indo-europeus.

Beyoncé teria dito que pretendeu homenagear a cultura africana. Qual? Embora o continente não esteja culturalmente tão fragmentado como pretendem os identitários, não há uma cultura africana única, há pluralidade. A homenagem naqueles termos acaba por ganhar perfil identitário nas referidas polémicas, baseadas em conceitos muito ultrapassados em África. Os debates ganhariam se conhecessem as novas produções musicais africanas e as formulações culturais de afro-politismo elaboradas por Achille Mbembe ou simplesmente de cosmopolitismo por Kwame A. Appiah.

Estas novas formulações aparecem no dia a dia africano, implícita ou explicitamente. Por exemplo, caminhando numa rua de Durban (África do Sul) deparei-me com outdoor sobre um órgão de comunicação definindo-se como “esta é uma rádio com afritude”.  

Na mesma ordem de ideias, nesses debates sobre o Black is King, há quem apresente o ouro da Antiguidade Oeste Africana como se África fosse toda ouro, acrescentando outros erros sobre o peso de fortunas antigas ou árvores genealógicas, neste pormenor revelando ignorância em relação às rotas da escravatura transatlântica. Errariam menos se tivessem lido Aux Portes de l’Or de Abdoulaye Bathily, historiador e diplomata senegalês, grande companheiro durante o periodo em que Dakar era uma das nossas bases de retaguarda durante a luta pela independência dos atuais PALOP.

Estes problemas são tradutores dos estereótipos criados em torno de África e do desconhecimento da sua realidade, pois a maior parte dos debatedores ou debatedoras à volta de Black is King nunca esteve em África ou esteve-o em confortáveis viagens turísticas.

A maioria de quem já viu o filme (ou álbum visual) considera-o uma maravilha do ponto de vista estético e simbólico, basta ser trabalho de Beyoncé cujo talento tem um vasto reconhecimento. Pessoalmente aprecio mais o trabalho da irmã dela, Solange, até porque filmou o seu excelente clip Losing you em Soweto, esse grande símbolo de luta afro-austral, mostrando-o tal como é até hoje.

Não sei se há entre esses debatedores ou debatedoras quem receba pagamentos por marketing da produtora ou, ao contrário, por produtoras despeitadas face ao sucesso esperado do filme. Para quem estiver de boa-fé na discussão, sublinhemos a existência de cinema africano com qualidade, apesar das monstruosas dificuldades de financiamento. O ouro mencionado de forma tão absurda não chegou a nenhum dos nossos realizadores mas, ainda assim, mostram imagens reais das vidas em África e dos combates pelo reconhecimento da sua importância. Uma boa ideia de conjunto pode ser obtida consultando algumas das obras exibidas no já tradicional Festival Panafricano de Cinema e Televisão (Fespaco) de Ouagadougou (para quem não sabe, é a capital do Burkina Faso que, também para quem não sabe, significa “país dos homens honestos”).

Junto com os filmes decorrem no Fespaco debates entre pessoas conhecedoras do continente. Num deles, já faz algum tempo, um grupo situado na linha da Democracia Não Racial — palavra de ordem maior nos processos de libertação — definiu a cor de África como verde e, perante interrogações de jornalista europeia, propôs que se olhasse a paisagem através da janela aberta. Se Desmond Tutu lá estivesse discordaria e diria que é arco-íris.

Também não sei se nesse ano Ousmane Sembène estava em Ouagá, mas sei que é um dos maiores senão o maior cineasta africano, falecido em 2007. Começou com o curta Borom Sarrete, retrato rápido da vida dum transportador pobre em Dakar na década de 1960 e, em 2004, apresentou o seu último filme, Moolaadé, sobre as mutilações genitais femininas, cuja atriz principal, Fatouma Coulibaly foi ela própria vítima dessa prática. Em entrevista então concedida em Cannes, Sembène anunciou ter pronto o roteiro do filme seguinte, focado no enriquecimento ilícito, mas a morte não permitiu.

Seria importante encontrar um diretor africano para realizar esse filme que ele deixou preparado, bem como os meios necessários. Hollywood e certas pessoas que discursam sobre África “dabuso” — como se diz em Luanda — não devem ter interesse. Em função do tema, Sembène intitulou o filme de Confraria dos Ratos.

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